Temas de Formação
Um dos artigos mais obscuros da nossa fé
- 12-04-2022
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A descida de Jesus à chamada “mansão dos mortos” talvez seja
um dos artigos mais obscuros e incompreendidos da nossa fé. Fala-se muitíssimo
pouco a seu respeito, embora ele conste expressamente no Credo, que rezamos
todos os domingos.
Para suprir esta ignorância — e também para combater certos
erros modernos —, tratemos brevemente do assunto.
Jesus desceu “aos infernos”
No latim, a expressão que se usa no Credo para resumir este acontecimento
é descendit ad ínferos (lit. “desceu aos infernos”). Mas, para não confundir a nossa
cabeça — e não pensarmos que Jesus desceu ao inferno dos condenados —, é até
melhor que usemos a expressão “mansão dos mortos” (com a qual estamos
acostumados por causa da nossa tradução litúrgica).
De facto, os judeus acreditavam, desde o Antigo Testamento,
que, quando uma pessoa morria, a sua alma imortal ia para junto dos seus pais,
num lugar chamado sheol (cf., v.g., Gn 37, 35, Nm 16, 30-33; Jn 2, 3). O próprio
Jesus aludiu a isto quando profetizou acerca de si mesmo: “Do mesmo modo que
Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe, assim o Filho do Homem
ficará três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12, 40). Esta expressão
não é o sepulcro, mas as “regiões inferiores” ou “infernais”, por assim dizer.
As almas dos mortos, porém, não se misturavam indistintamente
nesse lugar. A parábola do pobre Lázaro e do rico epulão (cf. Lc 16, 19-31) recorda-nos
a separação que, mesmo antes de Cristo, havia entre bons e maus: enquanto estes
se condenavam para um lugar de fogo e tormentos eternos, aqueles iam para o
“seio de Abraão”. E foi a este último lugar, especificamente, que desceu Nosso
Senhor Jesus Cristo:
Há quatro infernos: o inferno dos condenados, o purgatório, o
limbo das crianças e o limbo dos justos ou seio de Abraão. O inferno ao qual
desceu Cristo não é o dos condenados, mas o lugar onde moravam as almas dos
justos que morriam antes de se ter realizado a redenção — e que recebe o nome
de limbo dos justos (limbus Patrum).
Se falamos dos efeitos que produziu, Cristo baixou a todos os
infernos que se conhecem, mas com diferente finalidade, a cada um. E assim,
baixou ao inferno dos condenados para os convencer da sua incredulidade e
malícia; ao purgatório, para lhes dar a esperança de alcançar a glória, e ao
limbo dos patriarcas, para infundir a luz da glória eterna nos justos que ali
estavam retidos unicamente pelo pecado original da natureza humana. Mas pela
sua própria presença real Ele desceu unicamente ao limbo dos patriarcas, para
visitar na sua morada, com a alma, aqueles que pela graça tinha visitado
interiormente com a sua divindade. E desde ali estendeu aos outros infernos a sua
influência da forma como dizemos, de modo semelhante a como, padecendo num só
lugar da terra, libertou com a sua Paixão o mundo inteiro.
Quando professamos que Jesus “desceu à mansão dos mortos”,
então, estamos a falar do que aconteceu à alma de Cristo durante o tempo entre a
sua morte e a sua ressurreição. Enquanto o seu divino corpo estava no sepulcro,
a sua alma santíssima foi para junto dos mortos, para resgatar os que entre
eles eram justos e lhes abrir as portas do Céu, até então fechadas a todos,
como consequência do primeiro pecado.
Uma descida salvadora
Uma boa forma de explicar este artigo de fé é inserindo-o no
grande quadro da nossa salvação.
De facto, a história humana é uma longa linha do tempo, no
centro da qual se encontra ninguém menos que Nosso Senhor Jesus Cristo. Se
estamos no ano 2021, é porque se passaram 2021 anos desde o nascimento de
Cristo. Todas as vezes que escrevemos a data, estão implícitas as abreviações
d.C. (“depois de Cristo”) ou A.D. (anno Domini). Ainda que os nossos contemporâneos
tentem eliminar esta referência, chamando a nossa época simplesmente “Era
Comum” (E.C.), a luz de Cristo refulge através dos séculos, e é inútil qualquer
esforço por a esconder ou apagar.
Só que Jesus não está no centro da história como um simples
“ponto de referência” do passado, que nada tem a ver com as nossas vidas. Como
sabemos pela fé, Ele é o próprio Deus que salva. O significado do seu nome é o
que Ele fez (e faz) por todos os homens. Há uma diferença, porém, no modo como
Ele salvou os que vieram antes dele e como Ele salva a nós, que viemos depois.
É o que nos explica São Tomás de Aquino:
A paixão de Cristo foi uma espécie de causa universal da
salvação dos homens, tanto dos vivos como dos mortos. Ora, a causa universal aplica-se
aos efeitos particulares segundo algo especial. Portanto, assim como o poder da
paixão de Cristo se aplica aos vivos por meio dos sacramentos, que nos
configuram com a paixão de Cristo, também é aplicada aos mortos por meio da sua
descida aos infernos. Por isso, diz claramente Zc 9, 11: “Vou libertar os teus
cativos desta cisterna sem água por causa da aliança que contigo fiz, selada com
sangue”, isto é, pelo poder da sua paixão (STh III 52, 1 ad 2).
Os sacramentos são para nós, portanto, o que foi o descensus
para os justos do Antigo Testamento. Jesus resgata-nos da “cisterna sem água”
dos nossos pecados pelo Baptismo; aos nossos pais, porém, Ele salvou indo-lhes
ao encontro na região dos mortos.
Uma verdade de fé
Como não estamos acostumados com a catequese sobre este
acontecimento, podemo-nos perguntar: é realmente “de fé” — ou seja, é
obrigatório acreditar — que Jesus de facto desceu com a sua alma para salvar os
mortos antes dele, ou isto é apenas uma “especulação teológica”?
Devemos responder que sim, esta é uma verdade de fé, sobre a
qual falam todos os bons catecismos e livros de teologia dogmática e isto com
base em inúmeros registos das Escrituras, da Tradição e do próprio Magistério
da Igreja.
O silêncio da nossa época a respeito deste artigo de fé deve-se,
em primeiro lugar, como já dissemos, à singularidade do facto: a descida de
Jesus à mansão dos mortos não aconteceu na frente de todos, não foi atestada
por inúmeras testemunhas oculares — como foram, por exemplo, os seus milagres —
e, até por isso, não foi narrada meticulosamente por nenhum evangelista. Por falta
de detalhes, é um assunto sobre o qual, naturalmente, pouco se fala.
Mas, na nossa época, há também um factor que não devemos
subestimar. O seu nome é incredulidade. É uma infeliz tendência da teologia
moderna depreciar, ignorar ou até mesmo negar os acontecimentos mais
extraordinários da vida de Cristo. As reflexões dos nossos “eruditos” estão
cheias de espírito cético, racionalista e anti-sobrenatural. É muito comum ver
os teólogos contemporâneos qualificando, inclusive, as várias descrições da
descida de Cristo aos infernos como resquícios de uma “mitologia pagã”. Quando
a própria existência da alma humana é questionada por um sem-número de
teólogos, não impressiona que a descida da alma de Cristo à mansão dos mortos
seja igualmente posta em questão e distorcida, quando não negada de todo.
Que os incrédulos não creiam, não é novidade alguma. A nós
cabe preservar o que nós mesmos recebemos de outrem. Como disse o Apóstolo: “Eu
recebi do Senhor o que vos transmiti” (1Cor 11, 23). Só assim seremos católicos
de facto: preservando o depósito da Revelação, a Tradição dos nossos pais na
fé.