QUARESMA. Fazei bem a vós mesmos
O cristão vive, não para a Quaresma mas para a Páscoa, não para a Paixão mas para a Ressurreição. O mundo também quer a Páscoa e a Ressurreição. Assim, neste mundo são a Quaresma e a Paixão que distinguem os cristãos na sociedade. O que os distingue é, não a finalidade última, a felicidade, mas o meio de lá chegar, a penitência. A sociedade vive embevecida numa ilusão de plástico, numa falsa Ressurreição, numa Páscoa sem Paixão. Os cristãos são os únicos que sabem que a única verdadeira Ressurreição exige antes a Paixão. Por isso somos os únicos que vivemos a Quaresma. O mundo quer, como nós, a alegria da Ressurreição, mas acha que pode chegar lá sem passar pela penitência da Quaresma.
A sociedade
quer, tanto como os cristãos, a felicidade. Mas a Quaresma é aberrante porque,
no meio da sedução, a sociedade não entende que “a felicidade está mais em dar
do que em receber” (Act 20, 35). A felicidade ilusória deste mundo não entende
que este é o caminho da felicidade. A razão porque o mundo não vive a Quaresma
é porque quer uma felicidade que se baseie no receber. O cristão vê o mundo ao
contrário.
Mas o cristão faz isso também para viver bem neste mundo. Quem ora aprende a
viver bem no mundo. Quem faz jejum sabe suportar bem os azares que a vida lhe
traz. Quem dá esmola entende como viver no meio das carências que lhe
aconteçam. Fazemos penitência para chegar à felicidade, mas também conseguimos
com ela aprender a viver bem. Fazemos penitência e damos esmola para fazer bem
a nós mesmos, como disse um dos mais geniais portugueses de todos os tempos.
S. João de Deus, pedindo esmola pelas ruas de Granada, gritava “Irmãos, fazei
bem a vós mesmos”. A súplica que S. João fazia, ao pedir esmola para o seu
hospital, não invocava os pobres que acolhia e em quem ia gastar esse dinheiro.
Ele suplicava pelos mesmos a quem pedia. Ele pedia a favor dos próprios que lhe
davam. “Dai esmola para fazer bem a vós mesmos”. Era a preocupação pelos que
podiam dar que levava S. João a pedir esmola. Ele pedia que esses tivessem
misericórdia de si próprios. “Fazei bem a vós mesmos, porque a felicidade está
mais em dar do que em receber”.
Este é o paradoxo da Quaresma. Da Quaresma da oração, do jejum e da esmola para
fazer bem a nós mesmos, como disse o génio da Caridade que foi S. João de Deus.
Da Quaresma da penitência em que damos para sermos felizes, como disse o
fundador da Caridade, o Senhor que S. João serviu. “Em tudo vos demonstrei q
deveis trabalhar assim, para socorrerdes os fracos, recordando-vos das palavras
q o próprio Senhor Jesus disse: «a felicidade está + em dar do que em
receber»”(Act 20, 35).É isto a Quaresma.
Está a começar a aberrante, a insólita, a incompreensível Quaresma. A Quaresma
que prepara para a festa mais incrível, mais surpreendente, mais escandalosa
que a humanidade celebra. A festa em que Deus vai ressuscitar do corpo de um
criminoso condenado. A festa em que Deus se dá a Si mesmo para a nossa
felicidade. A Páscoa é a festa do Deus que nos abre o caminho para a felicidade
através do sangue das Suas chagas. A Páscoa é a festa que nos mostra que a
felicidade está em Ele dar a vida para nós a recebermos. Assim, se calhar, até
nem admira que a Quaresma seja insólita.