OS CRISTÃOS E A DATA DA PÁSCOA
A maior festa cristã, que é a Páscoa, vem actualmente celebrada em duas datas diferentes. Em 1997, por exemplo, os católicos e a maioria dos protestantes celebraram-na no dia 30 de Março, ao passo que os ortodoxos orientais e alguns protestantes celebraram-na quase um mês mais tarde, ou seja, a 27 de Abril. Esta diferença decorre de um desacordo no tocante à reforma do calendário efectuada pelo Papa Gregório XIII no século XVI.
Vejamos, pois, os antecedentes do problema e o actual modo de o colocar.
1. CALENDÁRIO: O QUE É?
Calendário provém do termo latino Calendae e da raiz grega kal, a qual significa chamar (donde kalein = chamar, em grego; calare, em latim). Em latim, o uso da palavra era restrito à linguagem sacral, servindo para designar a convocação do povo para o Campidoglio, feita por um dos sacerdotes quando a Lua entrava na sua fase crescente, convocação que visava a comunicar ao público os dias das nonas (isto é, do quarto crescente) e dos idos (da Lua cheia). Calendae, consequentemente, passou a significar o primeiro dia do mês (dia da convocação); por extensão, o mesmo termo designava mais tarde o mês inteiro. Calendarium vinha a ser, entre os romanos, o registro no qual os banqueiros anotavam os juros no primeiro dia de cada mês. Por fim, calendarium tomou o significado actual, designando o sistema de medir o tempo, sistema nitidamente relacionado com os fenómenos astronómicos. Principalmente a religião (nas suas diversas fases e modalidades) se interessou pelo calendário, pois todos os povos tiveram sempre consciência de que o tempo é algo de sagrado, que convém observar fielmente.
2. O CALENDÁRIO GREGORIANO
O Calendário Gregoriano supõe o calendário chamado "juliano". Este, por sua vez, foi ocasionado por certo impasse ocorrente na contagem do tempo em Roma.
Nos primeiros tempos de Roma, os meses eram de 29 ou 30 dias, contando-se, a partir de Numa Pompílio (715-672 a.C.), doze meses num ano. Mais tarde, Roma adoptou o ano civil de 365 dias, com os seus meses de 28, 30 e 31 dias, ficando apenas uma diferença de aproximadamente 6 horas entre ano civil e o ano trópico.
Sob Júlio César, a diferença acumulada entre um e outro destes já era de 85 dias. O Imperador resolveu então remediar a situação, decretando que o ano de 46 a.C. (708 de Roma) teria 85 dias a mais (donde se originou o chamado annus confusionis, ano de confusão). A seguir, conforme o parecer do astrónomo alexandrino Sosígeno, resolveu que de então por diante se atribuiriam ao ano civil 365 dias e 6 horas (quando na verdade o ano trópico consta de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos); pelo que, de quatro em quatro anos se acrescentaria ao ano um dia complementar chamado dia bissextil. Este nome deve-se ao facto de que a inserção se fazia entre 23 e 24 de Fevereiro; ora, o dia 24 de Fevereiro sendo o Sextus calendas martii, o dia intercalado ou suplementar, passou a ser bissextus calendas martii, e o ano correspondente tomou o nome de ano bissextil.
O Calendário juliano assim concebido era sistema assaz esmerado. Contudo, a diferença de menos de 12 minutos que nele distanciava o ano civil do ano trópico, havia de provocar a diferença de um dia em 128 anos. No tempo de César, após a reforma, o equinócio da primavera caía no dia 24/3; 128 anos mais tarde, caía no dia 23/3; 256 anos depois, no dia 22 do mesmo; por ocasião do concílio de Niceia (325) estipulou-se o dia 21/3. Em fins do séc. XVI o equinócio da primavera já cairia perto do dia 11/3; caso o processo continuasse, as estações do ano viriam a deslocar-se por completo dos seus meses habituais. Sendo assim, bispos e sábios medievais, conscientes de tais falhas, pediam reforma do calendário vigente.
Em 1232, o monge escocês João de Holywood, na sua obra "De anni ratione", sugeria mudança no sistema de intercalação do dia bissextil. Rogério Bacon (†1294), no seu "Opus maius ad Clemente IV", propunha ao Pontífice uma reforma do calendário. O Papa Clemente VI em 1345 encarregou dois matemáticos franceses de a estudar. Os Concílios de Constança (1414) e Basileia (1436) também trataram do assunto. Sixto IV (†1484) chamou a Roma, a fim de estudar a reforma, o famoso astrónomo Regiomontano (João Müller de Königsberg), o qual, porém, morreu antes de terminar o seu projecto. O Papa Leão X, no Concílio V de Latrão (1513-1517), deu novo impulso à reforma do calendário. Por fim, o Concílio de Trento pediu-a expressamente ao Papa.
Gregório XIII (1572-85), assim solicitado, abriu um concurso entre os astrónomos, valendo-se da colaboração dos mais famosos matemáticos da época (os irmãos Aloísio e António Lílio, o dominicano Inácio Danti, o jesuíta alemão Cristóvão Clau e o espanhol Pedro Chaón); após deliberar longamente sobre as fórmulas apresentadas, o Pontífice houve por bem dar preferência à de Aloísio e António Lílio; mandou então em 1577 cópias do projecto a todos os príncipes e Estados católicos. Apoiado por estes, publicou finalmente, cinco anos mais tarde, a 24 de Fevereiro de 1582 (pela bula "Inter gravissimas"), o novo calendário (ou calendário "novo estilo", em oposição ao calendário "velho estilo").
A primeira norma da reforma, visando a extinguir a diferença entre ano civil e ano trópico, mandava que a quinta-feira 4 de Outubro de 1582 fosse imediatamente seguida da sexta-feira 15 de Outubro do mesmo ano (tal medida não provocaria hiato entre os dias da semana); assim, doravante o dia 21 de Março coincidiria, como supunha o concílio de Niceia I (325), com o equinócio da primavera.
Era preciso, porém, evitar a repetição do desajuste... Já que este provinha do facto de que o ano civil era desde Júlio César (e continuava sendo) considerado 1/128 de dia (11 minutos e 12 segundos) mais longo do que o ano trópico (isto é, mais ou menos três dias em 400 anos), Gregório XIII dispôs não fossem considerados bissextos os anos do século não divisíveis por 400 (assim em todo período de 400 anos, três dias eram suprimidos). Por conseguinte, seriam bissextos os anos de 1600, 2000, 2400, ñ porém, os de 1700, 1800, 1900, 2100. Este correctivo (chamado equação solar) tornar-se-ia plenamente eficaz pelo prazo de mais de 3.000 anos: de 3.320 em 3.320 anos, porém será preciso suprimir um dia.
A reforma gregoriana aos poucos foi sendo adoptada pelos povos cultos. Na Espanha, em Portugal e em parte da Itália a supressão de dez dias fez-se na mesma data que em Roma. Na França ela realizou-se pouco depois: o dia seguinte ao domingo 9/12/1582 foi contado como segunda-feira 20/12. A Polónia adoptou a mudança em 1586; a Hungria, em 1587. Nos Estados protestantes, porém a resistência fez-se sentir: a Alemanha só aceitou o calendário "novo estilo" em 1700; a Inglaterra, em 1752.
Quanto aos cristãos cismáticos orientais, ainda seguem o calendário juliano, ao menos na Liturgia. É de crer, porém, que não tardarão a reconhecer as vantagens do calendário corrigido. Antes de empreender a sua reforma, Gregório XIII, aliás, consultou o Patriarca de Constantinopla sobre o assunto; mas, longe de obter resultado, o seu sistema foi explicitamente condenado por um sínodo oriental em 1593. Contudo em 1923, o patriarcado de Constantinopla, as circunscrições eclesiásticas de Atenas, Chipre, da Polónia (cismática) e da Roménia adoptaram o calendário gregoriano para designar ao menos as suas festas fixas (o dia seguinte a 30 de Setembro foi dito 14 de Outubro de 1923). Em 1948, o sínodo "pan-ortodoxo" de Moscou resolveu deixar liberdade de escolha, no caso, a todas as comunidades cristãs da órbita soviética. De resto, têm-se registrado nos últimos tempos adesões notáveis: a Turquia adoptou o calendário gregoriano em 1924; o Japão já o introduzira em 1873; a China, em 1912; a Bulgária, em 1916. Muçulmanos e israelitas ainda ñ o reconhecem no plano religioso.
3. E A DATA DA PÁSCOA?
Para pôr termo a hesitações existentes nos primeiros séculos, o Concílio geral de Niceia em 325 determinou que a Páscoa seria celebrada no domingo seguinte à primeira Lua cheia após o equinócio da primavera do hemisfério Norte (21/3). Com o passar dos séculos, porém, a contagem do equinócio da primavera foi-se desfasando. Daí a reforma promulgada pelo Papa Gregório XIII em 1582, reforma que não foi aceite pelos cristãos ortodoxos orientais e outros povos. Todavia, já que tal divergência hoje em dia se manifesta como algo de totalmente despropositado, as comunidades cristãs de diversas partes do mundo procuram saná-la.