Demónio: um assunto incómodo- Reflexão de D. Murilo Krieger
''O mal não é uma abstracção, mas designa uma pessoa, Satanás, o maligno, o anjo que se opõe a Deus'', diz Dom Murilo, citando o Catecismo da Igreja
O irlandês C.S.Lewis, escritor e teólogo anglicano,
falecido em 1963, deixou-nos textos marcados pela erudição e pelo humor. Em
mais de um livro abordou a questão do diabo e, num deles, foi particularmente
criativo. Para expressar as suas ideias, imaginou um velho diabo escrevendo
cartas ao sobrinho, um diabo jovem, inexperiente; queria que esse sobrinho se
tornasse um “bom” diabo.
O subtítulo do livro – “Como um diabo velho instrui um diabo jovem sobre a arte
da tentação” – indica aonde o autor queria chegar. O experimentado diabo
procurava convencer o sobrinho de que, na arte de enganar os homens, era
fundamental convencê-los de que ele, o diabo, não existia. Convictos os homens,
disto, a acção do sobrinho seria mais fácil, rápida e eficaz.
Lembrei-me deste livro, editado no Brasil no início da década de 1980
("Cartas do Coisa-Ruim"), diante de colocações do Papa Francisco,
desde que iniciou o seu ministério. Ao contrário da forma como muitos tratam
este tema – afastam-no ou incluem-no no rol das coisas ultrapassadas e inaceitáveis
–, o actual Papa tem-se referido a ele com frequência. O seu antecessor, Paulo
VI, no começo da década de 1970 disse:
"O mal que existe no mundo é ocasião e efeito de uma intervenção em nós e na
nossa sociedade de um agente obscuro e inimigo, o Demónio. O mal não é apenas
uma deficiência, mas um ser vivo, espiritual, pervertido e pervertedor.
Terrível realidade. Misteriosa e amedrontadora... O Demónio é o inimigo número
um, o tentador por excelência. Sabemos que este ser obscuro e perturbador
existe e realmente continua agindo... Sabe insinuar-se em nós, por meio
dos sentidos, da fantasia, da concupiscência... para introduzir desvios”
(15.11.72).
Quem vivia naquela época lembra-se de que estas afirmações foram uma verdadeira
bomba. Por causa delas, Paulo VI foi ironizado, acusado de obscurantista.
Para o Papa Francisco, seguindo a tradição bíblica, o Diabo não é um mito, mas
um ser real. Numa das suas pregações matinais, na Casa Santa Marta, o Papa
afirmou que por trás do ódio que há no mundo em relação a Jesus e à Igreja está
o “príncipe deste mundo”: “Com a sua morte e ressurreição, Jesus resgatou-nos
do poder do mundo, do poder do diabo, do poder do príncipe deste mundo.
A origem do ódio é esta: estamos salvos e este príncipe do mundo, que não quer
que sejamos salvos, odeia-nos e faz nascer a perseguição, que começou nos
primeiros tempos de Jesus e continua até hoje. Embora o diálogo entre nós seja
importante, não é possível dialogar com este “príncipe”; “podemos somente
responder com a palavra de Deus que nos defende”.
O Catecismo da Igreja Católica dedica vários números ao diabo – por exemplo,
quando se refere aos Anjos caídos, às tentações de Jesus, ao exorcismo, à
necessidade da renúncia ao seu poder, ao domínio de Jesus sobre eles. "O
mal não é uma abstracção, mas designa uma pessoa, Satanás, o maligno, o anjo
que se opõe a Deus. O ‘diabo’ é aquele que ‘se atira no meio’ do plano de Deus
e de sua ‘obra de salvação’ realizada em Cristo” (nº 2851).
O seu poder não é infinito, pois ele não passa de uma criatura, “poderosa pelo
facto de ser puro espírito, mas sempre criatura: não é capaz de impedir a
edificação do reino de Deus”. A sua acção é permitida pela divina providência,
“que, com vigor e doçura, dirige a história do homem e do mundo. A permissão
divina da actividade diabólica é um grande mistério, mas “Sabemos que tudo
contribui para o bem daqueles que amam a Deus' (Rm 8,28)" (CIC 395, ler,
também, os números anteriores: 391-394).
São João Crisóstomo, bispo e doutor da Igreja († 407), escreveu aos cristãos de
Antioquia: “Na verdade, não me dá prazer falar-vos do diabo; mas a doutrina que
é consequência desta realidade será muito útil para vós”.