Na fórmula da Profissão de Fé do cristão, encontramos, aquando da proclamação da adesão do crente à verdade segundo a qual o «Logos» de Deus «desceu dos céus e encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria», a indicação de que se deve fazer uma inclinação.
Para quê e porquê? E porquê neste preciso momento e não num
qualquer outro momento? O que há de tão especial neste acto de Deus que mereça
uma tal também especial atitude de reverência, de discreta adoração?
Na economia geral da relação de Deus com a criação e
especialmente com a criação do ser humano, este é o segundo momento mais
importante, a segunda marca absoluta, definitiva.
A primeira deu-se quando Deus criou o mundo a partir de si
como infinito ato de superabundante amor. Neste ato de posição absoluta da
possibilidade e realidade dos seres, deu ser à humanidade, em momento de
especial ápice caritativo, momento no qual dotou algo com a possibilidade de
escolher irredutivelmente o seu porvir. Com tal possibilidade passou a haver
mundanamente a capacidade de escolher o bem, o que implica, em cada possível
ato, poder não escolher o bem, absoluto da possibilidade da origem da realidade
do mal. O ser humano traz consigo a possibilidade de bem e de mal e é tal dom
que faz dele propriamente humano, não bestial.
A incarnação do Verbo é o momento em que deixa de haver
separação entre o criador e a criatura, em que Deus, fazendo-se carne, assume a
plenitude da criação, assumindo a plenitude de seu ápice. Não sendo possível ao
ser humano assumir Deus, é a este que compete assumir a humanidade. A
incarnação cumpre a criação em sua possível plenitude, esta em que é o próprio
Deus que experimenta ser como o melhor possível do criado. Pela incarnação, Deus
pode saber como é ser-se humano incarnadamente e a criação experimenta a
presença à sua medida do próprio criador. A incarnação é o ato de sacralização
absoluta do mundo, através da marca sacramental realíssima da carne de Jesus em
seu seio. É este o grande batismo de que João fala em Marcos. Cristo é o
sacramento batismal do mundo.
Mas não há sacramentos mágicos ou impostos. Se a criação
incoativa é uma posição ontológica absoluta sem auscultação do criável, pela
razão evidente, o sacramento, como oferta caritativa absoluta do amor de Deus,
é passível de ser aceite ou não aceite. Nunca há violência sacramental, mesmo
que de tal haja ilusão. Ninguém é obrigado ou obrigável a ser amado. Esta
aceitabilidade tem um preço que é a maior ou menor proximidade a Deus por via
da maior ou menor proximidade ao seu ato de amor ofertado. A medida exata desta
distância é aquilo a que se chama, na sua perfeição, céu, na sua imperfeição
pró-total, inferno.
O que o Menino cuja vinda à carne se celebra no Natal,
permitida pela escolha de Maria ao dar o seu sim a tal possibilidade, veio
trazer ao mundo foi a possibilidade da proximidade sem distância a Deus. O
Antigo Testamento é a narrativa da relação distante com Deus, mediada pela
natureza bruta e por seres humanos que agem como incarnados anjos de Deus,
mantendo este a sua distância dada pela sua pura espiritualidade. Episódios
como os da sarça ardente manifestam bem a intransponibilidade da distância
entre o ser humano carnal e o Deus puro, puro espírito, puro fogo e pura luz.
O Menino, sendo tão espírito quanto o que a sarça
representava, é de carne. O Menino cresceu no seio de Maria, alimentando-se da
matéria da Mãe por meio de um cordão umbilical semelhante ao meu, ao teu. O
Menino, já parido, já respirando ar, bebeu leite do seio de Maria. O Menino é,
precisamente, como diz Mateus, "Emmanuel", «Deus connosco». Mas não
apenas «connosco», mas da nossa mesma carne, fazendo, assim que incarnou, que
passássemos a ser da sua carne.
Até à incarnação do Verbo, o ser humano era de carne humana,
mas, após a incarnação do Verbo, o ser humano passa a ser da carne de Deus,
pois Deus acabou de assumir a carne humana. Sendo esta assunção perfeita, a
carne deixa de ser humana, para passar a ser divina. Algo que se esquece, mas
que é fundamental, decisivo. Desde que Cristo é carne que a carne é divina,
participando nós, seres humanos, da divina carne.
Não é já Cristo que partilha da carne dos seres humanos, são
os seres humanos que participam da carne de Cristo. A carne é, assim, desde que
Cristo a assumiu e tornou perfeita, em si mesma, imaculada. É a nossa relação
com a nossa carnalidade que serve ou não a sua pureza, que a cumpre
constantemente em sua radical divindade ou a perverte. Mas a besta não é a
carne, sou eu quando lhe não sou fiel.
Que lhe não sou fiel como Maria e Jesus foram.
A divina relação carnal entre Maria e Jesus purifica para
sempre o sentido da carnalidade: por meio da liturgia soteriológica da carne de
Maria, foi ao Verbo possível ganhar carne. Ao ganhar carne, o Verbo
imediatamente divinizou toda a carne que, como Maria, é carne ao serviço da
salvação do mundo. Compreende-se melhor qual a razão pela qual Maria, em sua
carne, mereceu acompanhar imediatamente a carne de sua carne no Céu, isto é e
logicamente, junto do Filho cuja carne permitiu.
Como o santo Evangelho, a santa caridade da boa-nova, está
longe da peçonha maniqueia e pagã da demonização da carne, impossível em termos
cristãos, pois não há perfeito Cristo sem perfeita carne, na perfeição de sua
carne.
Amaldiçoar a carne, é amaldiçoar o Verbo na sua carne. Tal é
simplesmente blasfemo.
«Bendito é o fruto de teu ventre», diz a Isabel de Lucas a
Maria. Neste ventre, por este ventre, não apenas passou, mas continua sempre a
passar a salvação do mundo. Esta salvação tem precisamente no sim de Maria o
seu paradigma. Salvar-se é acolher o Verbo de Deus em seu seio. O único
necessário.
Se o Espírito sopra de infinitas formas, como e onde quer, a
incarnação é a forma de o Espírito soprar Deus na carne. Literalmente informar-se
na, para si absolutamente nova, forma da carne. Forma velha para nós. Forma
para sempre rejuvenescida pela frescura da mocinha Maria, que permitiu ao
Espírito dar-se em puro carnal amor ao mundo, reconsagrando-o, batizando-o.
O joanino «Logos» do princípio, eterno companheiro do Pai, na
união do Espírito, paradigma de toda a relação possível, carne lógica da
caridade oblativa que eternamente os une, enlevo do Pai, manifesta-se no mundo
criatural não como fantasma, não como terrífico poder, mas como indefeso e
frágil pedacinho de terna carne humana, de que nada há a temer – "não
temas, Maria”, diz Gabriel –, todo-poderoso como dom de possibilidade de amor e
de amor em acto. Promessa eterna de salvação que se cumpre até à morte e ressurreição.
«Nada temas, Maria». Nada a temer, se fores Maria. Deus
põe-te como ato de amor. Se fores fiel a este ato, nada tens de temer. Mesmo a
morte de teu Filho será vivida por ti como um ato de oblação. Nada temas. Mesmo
no mais profundo sofrimento, nunca abandonarás o teu Filho. E ele nunca te
abandonará. Que temer, então, Maria?
Ao contemplarmos o Menino, absolutamente frágil, mas
todo-poderoso como dom absoluto de caridade divina, pensemos em como fazer da
nossa carne a sua carne, em como transformar cada um de nossos atos na carne do
bem da caridade, sempre frágil, mas todo-poderosa de cada vez que põe bem na
continuidade da criação.
Lembremos que, sendo assim, não há como pecar. A caridade é a
impossibilidade do pecado. Não a sua morte, a sua impossibilidade. Onde está a
caridade, não só habita Deus, como nunca poderá habitar o pecado.
Diz o poeta, num momento de terrível angústia: «Meu Deus, e
eu que não tenho a caridade!...» [Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de
Campos", Lisboa, Ática, 1980, "Ali não havia eletricidade"],
reconhecendo a absoluta vacuidade de tudo o mais. A caridade feita frágil carne
é tudo. O mais é nada.
Natal é a caridade e a caridade é o Natal, não apenas o Natal
de Jesus, mas o nosso Natal de cada ato em cada ato de caridade, abençoada
carne do amor.
Santo Natal.
Américo Pereira
Universidade Católica
Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em
22.12.2014