Se, como ensina Jesus, os fariseus são os que abandonaram “o
mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”, a nossa época está cheia
deles. E nem é preciso procurar muito.
No Evangelho, Jesus repreende com dureza os fariseus: Bem
profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: “Este povo
honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. De nada adianta o
culto que me prestam, pois, as doutrinas que ensinam são preceitos humanos” (Is
29, 13). Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens
(Mc 7, 6-8).
Nesta passagem, Jesus põe em contraste o “mandamento” de Deus
e a “tradição” dos homens. À luz da história da salvação, porém, nós sabemos
que se trata de duas tradições (já que traditio vem do verbo latino trado,
“transmitir, entregar”): os Mandamentos são uma tradição divina, pois tem como
origem o próprio Deus. Foi o próprio Senhor que entregou a Moisés as tábuas da
Antiga Lei. Por isso, desde o início, a tradição judaico-cristã é não uma
tradição como outra qualquer, mas a Tradição por excelência.
Nas religiões naturais, são os homens que repassam aos outros
o que pensam e acreditam a respeito da divindade, num plano meramente
horizontal. No judaísmo e no cristianismo, ao contrário, é Deus mesmo que vem
ao encontro do homem. Deixar essa tradição, portanto — a Tradição —, é
renunciar ao relacionamento com Deus, que é vertical, reduzindo tudo às coisas
deste mundo.
Sobre o abandono do sobrenatural, o Venerável Fulton Sheen,
disse certa vez o seguinte:
Antigamente, vivia o homem num universo tridimensional onde,
de uma terra que ele habitava com os seus vizinhos, avistava acima o céu e
abaixo o inferno. Esquecendo Deus, a sua visão do homem ficou ultimamente
reduzida a uma só dimensão. Acha agora que a sua actividade esteja limitada à
superfície da terra: um plano sobre o qual se move, não subindo para Deus ou
descendo para Satanás, mas somente para a direita ou para a esquerda. A velha
divisão teológica dos que se acham no estado de graça e dos que não estão, deu
lugar à separação política entre direitistas e esquerdistas. A alma moderna
limitou definitivamente os seus horizontes.
Embora faça menção explícita a uma “separação política”, Fulton
Sheen fala aqui de um problema fundamentalmente de fé: o homem moderno deixou
de acreditar na Igreja, em Cristo e, em última instância, até no próprio Deus.
Com isto, e porque o homem é um ser essencialmente religioso, ele passou a
acreditar em outras coisas — ou até, como dizia Chesterton, em qualquer coisa.
A imagem bíblica dos salvos e condenados, a distinção agostiniana entre “cidade
de Deus” e “cidade dos homens” foi deixada de lado, dando lugar às mais
variadas distinções: direita e esquerda, ricos e pobres, homens e mulheres,
brancos e negros, etc. Não sem razão, a nossa época vive em conflitos
constantes e intermináveis.
Mas a falta de fé do nosso século está atrelada
principalmente a um problema de natureza moral. Chesterton já tinha
“profetizado”, por assim dizer, que a “próxima grande heresia” seria “um ataque
à moralidade, especialmente à moral sexual”. Como as duas coisas se conectam é
muito fácil entender:
A transgressão contínua e culpável da lei de Deus
(desonestidades, negócios sujos etc.) produz na alma do pecador um desassossego
cada vez maior contra a lei de Deus, que o proíbe de se entregar com
tranquilidade às suas desordens. Esta situação psicológica deve desembocar
logicamente, mais cedo ou mais tarde, numa destas duas soluções: o abandono do
pecado ou o abandono da fé. Se a isto acrescentamos que Deus vai retirando cada
vez mais as suas graças e as suas luzes como castigo pelos pecados cometidos,
não é de se maravilhar que o desgraçado pecador acabe por apostatar a fé.
Não há dúvida: a imoralidade desenfreada que reina no mundo
de hoje é uma das causas principalíssimas — a mais importante depois da
propaganda materialista e ateia — da descristianização cada vez maior da
sociedade moderna. O mesmo Cristo nos avisa no Evangelho que “todo o que
pratica o mal odeia a luz” (Jo 3, 20). Não há nada que cegue tanto como a
obstinação no pecado.
Em suma, a nossa época abandonou a Tradição e a prática dos
Mandamentos porque deixou o seu coração corromper-se com o que Jesus diz ainda
no Evangelho dos fariseus: “as más intenções, imoralidades, roubos,
assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão,
inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo” (Mc 7, 21-22).
Como consequência desta falta de fé, a modernidade criou os seus
próprios “sistemas” morais; assim como os fariseus da época de Jesus, também os
nossos contemporâneos possuem as suas “tradições”. Por não viverem de acordo
com aquilo em que acreditavam, passaram a acreditar no modo como vivem. Eles
abandonaram a doutrina católica pelo “politicamente correcto”: pecado, agora, é
não aceitar o aborto, o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, as relações
pré-matrimoniais e tudo o que o mundo apoia, aplaude e incentiva.
O farisaísmo da nossa época é este: a despeito da Palavra de
Deus, que é muito clara a respeito do “salário do pecado” (Rm 6, 23) — e do que
seja pecado! —, que muito claramente afirma que “nem os impuros, nem os
idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os
ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os
assaltantes possuirão o Reino de Deus” (1Cor 6, 9-10), nós estamos convencidos
de que o inferno não existe e, se existe, está vazio e não precisamos de nos
preocupar com ele; nós deixamos de falar do Céu para concentrar os nossos
esforços na “construção de um mundo melhor”; e também, como consequência disto,
já não falamos de pecado e a única coisa que tememos agora é, quando muito, o
juízo dos homens.
De onde quer que os nossos contemporâneos tenham tirado todas
estas coisas, uma coisa nós sabemos: dos Mandamentos e da Tradição é que não
foi. Quem folhear todas as páginas das Escrituras, dos Santos Padres e dos
Concílios não achará uma linha sequer em defesa das suas teses mirabolantes —
porque, afinal, é disto que se trata: ideias fabricadas, “fábulas” inventadas
tão-somente para o prazer daqueles que escutam. Estamos no período profetizado
pelo Apóstolo: “tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da
salvação” e, “levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar
novidades, ajustarão mestres para si, apartarão os ouvidos da verdade e se
atirarão às fábulas” (2Tm 4, 3-4).
Foi a estas pessoas que Jesus chamou “hipócritas”: as que
abandonam “o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. São os
fariseus do século XXI.