A Voz do Papa
Homilia do Papa Francisco na celebração extraordinária de oração pela pandemia da Covid-19
- 28-03-2020
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Rever-nos nesta narrativa, é
fácil; difícil é entender o comportamento de Jesus. Enquanto os discípulos
naturalmente se sentem alarmados e desesperados, Ele está na popa, na parte do
barco que se afunda primeiro… E que faz? Não obstante a tempestade, dorme
tranquilamente, confiado no Pai (é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a
dormir). Acordam-No; mas, depois de acalmar o vento e as águas, Ele volta-Se
para os discípulos em tom de censura: «Por que sois tão medrosos? Ainda não
tendes fé?» (4, 40).
Procuremos compreender. Em que
consiste esta falta de fé dos discípulos, que se contrapõe à confiança de
Jesus? Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O
invocam: «Mestre, não Te importas que pereçamos?» (4, 38) Não Te importas:
pensam que Jesus Se tenha desinteressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas
nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer: «Não te importas
de mim». É uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração. Terá
abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que
Ele. De facto, uma vez invocado, salva os seus discípulos desalentados.
A tempestade desmascara a nossa
vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que
construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e
prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre,
sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a
descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma
dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente
«salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos
nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as
adversidades.
Com a tempestade, caiu a
maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado
com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada
pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.
«Por que sois tão medrosos? Ainda
não tendes fé?» Nesta tarde, Senhor, a tua Palavra atinge e toca-nos a todos.
Neste nosso mundo, que Tu amas mais do que nós, avançamos a toda velocidade,
sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos
absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os
teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não
ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos,
destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente.
Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Senhor!»
«Por que sois tão medrosos? Ainda
não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto
acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se de Ti. Nesta
Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: «Convertei-vos…». «Convertei-Vos a Mim de
todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova
como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o
tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário
daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e
aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no
medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito
derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito,
capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e
sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas
manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último
espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos
decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores
dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças
policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros
que compreenderam que ninguém se salva sozinho.
Perante o sofrimento, onde se
mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e
experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17,
21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança,
tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães,
avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia
a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o
olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem
pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas
vencedoras.
«Por que sois tão medrosos? Ainda
não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não
somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os
antigos navegadores das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa
vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo,
experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a
força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas
más. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida nunca morre.
O Senhor interpela-nos e, no meio
da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a
esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que
tudo parece naufragar.
O Senhor desperta, para acordar e
reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos
um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos
curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor.
No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros
e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos
salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos
a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a
reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a
mecha que ainda fumega (cf. Is 42, 3), que nunca adoece, e deixemos que
reacenda a esperança.
Abraçar a sua cruz significa
encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual,
abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar
espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa
encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e
permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na
sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a
fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a
salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança.
Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.
«Por que sois tão medrosos? Ainda
não tendes fé?» Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de
Pedro, gostaria nesta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão
de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta
colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador,
a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos
corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos
temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a
repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro,
«confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf.
1 Ped 5, 7).
Vaticano, 27 de Março de 2020