Já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da mortalidade: tratemos desta vida como mortais, da outra como imortais.
Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega, que empregar-me na vida que há-de acabar, e não tratar da vida que há-de durar para sempre?
Cansar-me, matar-me pelo que forçosamente hei-de deixar, e do que hei-de lograr ou perder para sempre não fazer nenhum caso?
Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor?
Mortos, mortos, desenganai estes vivos!
Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos, quando entrastes e saístes pelas portas da morte.
A morte tem duas portas:
uma porta de vidro, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra na eternidade.
Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem adiar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre.
Oh que transe tão apertado! Oh que passo tão estreito! Oh que momento tão terrível!
Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte.
Disse bem, mas não entendeu o que disse.
Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa.
Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra.
Se olhais para cima, uma escada que chega até ao céu; se olhais para baixo, um precipício que vai parar no inferno. E isto incerto!
Mostrou Deus uma visão ao profeta Amós, (que era um homem do campo), e perguntou-lhe o que via.
Respondeu o profeta:
- Senhor, vejo uma vara comprida e farpada, com que os rústicos alcançamos a fruta e a colhemos das árvores.
Pois essa vara que vês, – diz Deus, – é a morte.
Todo esse mapa do mundo é um pomar. As árvores, umas altas, outras baixas, são as diversas gerações e famílias.
Os frutos, uns mais maduros, outros menos, são os homens. A vara, que alcança os ramos mais levantados, é a morte: colhe uns e deixa os outros.
Ah, Senhor, que essa é a morte como havia de ser, e não como é!
Quem entra a colher num pomar, passa pelos pomos verdes e colhe os maduros. Mas a morte não faz assim; deixa os maduros e colhe os verdes.
E já se colhera só os frutos verdes, colhera frutos:
mas a queixa minha é, que deixa de colher os frutos e colhe as flores.
Alerta, flores, que a Primavera da vida é o Outono da morte! A foice segadora que traz na mão, instrumento é do Agosto e não do Abril.
Arma-se com ardilosa impropriedade a morte: ameaça as espigas, para que se desacautelem as flores.
António Vieira