Falar da Tradição da Igreja não é falar de simples costumes que se perpetuam na vida da Igreja. Não estamos a falar de tradições culturais, mas, da Sagrada Tradição. A Sagrada Tradição guarda o depósito de fé da Igreja, que conserva o que Jesus ensinou. Este depósito de fé é também chamado Revelação, ou seja, aquilo que Deus ensinou de Si e dos Seus mistérios aos homens, através dos ungidos do povo de Deus, na Antiga Aliança (patriarcas, juízes, profetas, autores bíblicos, etc) mas, sobretudo, por meio de Cristo, que depois foi ensinado pelos apóstolos, guardado e vivido na Igreja primitiva. Esta verdade revelada está contida na Tradição da Igreja e na Sagrada Escritura, a Bíblia.
A Sagrada Escritura e a Tradição contêm, pois, toda a
doutrina revelada; a Tradição chega a nós hoje, acima de tudo, por meio dos
símbolos da fé (os credos, como o dos apóstolos e o
Niceno-Constantinopolitano), na liturgia e na vida (pregação e santos) da
Igreja, nos escritos dos padres e doutores da Igreja, que nos primeiros séculos
transmitiram a fé. O Magistério da Igreja, sob a assistência do Espírito Santo,
conserva e interpreta esta Revelação (cf Jo16, 12-13; Lc 22,32; Jo 21,15).
Tanto a Escritura como a Tradição são Palavra de Deus, isto
é, o ensinamento divino, comprovado por milagres e profecias; com a diferença
de que a Tradição não foi escrita por aqueles a quem Deus revelou; embora, com
o tempo, outras pessoas tenham podido escrevê-la, para a conservarem e
transmitirem com maior fidelidade. “Daí resulta que a Igreja, à qual estão
confiadas a transmissão e a interpretação da Revelação, ‘não deriva a sua
certeza a respeito de tudo o que foi revelado somente da Sagrada Escritura. Por
isso, ambas devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e
reverência” (CIC 82).
Palavra de Deus não é só a Bíblia
É importante entender que, a Palavra de Deus não é a Bíblia,
mas a Bíblia é a Palavra de Deus, porque ela é infalivelmente inspirada. Talvez
assuste ouvir isto, mas esta é uma premissa fundamental para entender a fé da
Igreja. A Palavra de Deus é o Verbo eterno do Pai, que encarnou no ventre da
Virgem Maria. Portanto, a Palavra eterna é Pessoa Divina e por mais sagrado e
inspirado que seja um livro, ele não pode conter toda a Palavra. Por isso
mesmo, no final do seu evangelho São João afirma: “Jesus fez muitas outras
coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia
conter os livros que se deveriam escrever” (Jo 21, 25).
Então, muitas coisas que Jesus ensinou não foram escritas,
mas foram ensinadas e vividas; e estas coisas constituem a Tradição da Igreja.
Por isso, diz o Catecismo da Igreja Católica: “Todavia, a fé cristã não é uma ‘religião
do Livro’. O cristianismo é a religião da Palavra de Deus, ‘não de um verbo
escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e vivo’. Para que as Escrituras não
permaneçam letra morta, é preciso que Cristo, Palavra eterna de Deus vivo, pelo
Espírito Santo nos ‘abra o espírito à compreensão das Escrituras’ Lc 24, 45”
(CIgC 108).
Sagrada Tradição
Aliás, a própria Bíblia, ou Sagradas Escrituras, têm o seu
berço na Sagrada Tradição. A Tradição inicial, ou seja, a pregação dos
apóstolos, é anterior à Sagradas Escrituras e durante muitos anos foi a única
regra de fé. Afinal, Jesus mandou: “Ide e pregai o Evangelho a toda a criatura”
(Mc 16, 15), e não “Ide e escrevei livros” (é bom lembrar que na época não
existia gráfica, nem caneta, nem tampouco máquina de datilografar, computador
menos ainda). Com efeito, a pregação dos apóstolos começou no próprio ano da
morte de Cristo (ano 33).
Diversamente, os livros da Sagrada Escritura, só começaram a
serem escritos a partir do ano 50 até ao ano 100; e, sobretudo, não foram
conhecidos pela Igreja universal, senão no decurso dos primeiros séculos, pois
ao princípio, só eram conhecidos pelas Igrejas particulares a que se
destinavam. Notável é o testemunho da própria Bíblia em favor da tradição:
“Embora tivesse muitas coisas a escrever-vos, não o quis fazer por meio de
tinta e papel, pois espero ver-vos e falar-vos de viva voz” (2Jo 12);
“Conservai-vos firmes na fé e guardai as tradições que aprendestes, quer pela
nossa pregação, quer pela nossa carta” (2Ts 2, 14); “O que ouviste da minha
boca e de muitas testemunhas, confia-o a outros homens fiéis, capazes de
instruir os outros” (2Tm 2,2).
Se entendermos que a Escritura é a única fonte da nossa fé,
como fazem os protestantes, somos forçados a achar que nos primeiros anos e
séculos, não havia na Igreja fonte alguma de fé, o que é inadmissível, porque
equivaleria a dizer que, então, não havia fé; mas, é admissível aceitar uma
fonte de fé distinta da Escritura, a saber, a Tradição ou ensino dos apóstolos
e seus sucessores.
A Igreja nasceu da Bíblia?
A Bíblia nasceu da Igreja e não a Igreja nasceu da Bíblia.
Não se pode saber com certeza que livros contêm na realidade a doutrina de
Cristo, nem qual o seu verdadeiro sentido, a não ser pelo ensino da Igreja.
Portanto, se não se acredita na assistência de Deus de infalibilidade à Igreja,
tampouco se pode acreditar no valor infalível da Bíblia como Palavra de Deus.
Não se pode celebrar o fruto negando a existência e o valor da árvore que o
gerou. Por isso, diz Santo Agostinho: “Eu não creria no Evangelho, se a isto
não me levasse a autoridade da Igreja Católica”.
A Igreja é esta mãe que nos alimenta da graça de Cristo, que
nos ensina a fé e, por isso, diz São Cipriano (séc. III): “Nascemos todos do
seu ventre, somos nutridos com o seu leite e animados pelo seu Espírito”.