Ser mãe de um bebé anencéfalo
‘Passámos a viver um dia de cada vez e aprendemos a dar graças por mais um dia de vida dela no meu ventre’, testemunha Kellen
O meu nome é Kellen Reis, tenho 30 anos, sou jornalista e moro em Pindamonhangaba (SP). Sou casada há quase seis anos com Diogo, pai das minhas filhas e parceiro nos melhores e nos piores momentos da minha vida. Quero partilhar com vocês uma parte desses momentos.
Ser mãe não estava nos meus planos aos 24 anos. Namorava, há pouco mais de dois anos, e estávamos começando a planear o nosso futuro juntos quando fomos surpreendidos com a primeira gestação. Mesmo com o medo e a insegurança, fomos contagiados pela felicidade logo de cara. Casámo-nos no civil, primeiro e, ao chegarmos da viagem de lua-de-mel, fomos correndo pegar o resultado da primeira ultrassonografia morfológica. A surpresa chegou com a frase que ficou guardada em minha mente, tamanho foi o choque: “ausência parcial de massa encefálica, o que sugere anencefalia”. Procuramos minha obstetra imediatamente, mas ela não estava mais no consultório. Uma outra ginecologista nos atendeu e, como se estivesse passando uma receita de bolo, nos disse que nossa filha, com cinco meses de gestação, para quem escolhemos o nome de Maria Eduarda, tinha má formação cerebral e não teria condições de sobreviver. E ainda nos sugeriu entrar na justiça para pedir autorização para abortar, pois, segundo ela, não valia a pena levar a gestação até o fim, já que, talvez, nem a bebê aguentasse. Ela deixou bem claro que não havia tratamento ou cirurgia que resolvesse o problema.
Nós a deixamos falando sozinha e saímos do consultório, desorientados. Quem aquela profissional achava que era para decidir algo ou nos sugerir tirar a vida da nossa filha? Ficamos indignados!
Depois do baque, com o apoio da nossa família, fui-me informar mais sobre o assunto, saber dos riscos, dos casos mais conhecidos, pesquisar outras famílias que já tinham passado pela mesma situação. Somando tudo isso à fé em Deus e em Nossa Senhora, fomos ganhando forças para aguentar até o momento em que a Duda aguentasse. Passamos a viver um dia de cada vez e aprendemos a dar graças por mais um dia de vida dela em meu ventre. Cada mexida na barriga era uma vitória celebrada com alegria.
Ela aguentou as 39 semanas. Nasceu em 27 de Outubro, chorando, com 40 cm e 2kg. Lembro-me, nitidamente, do seu rostinho colado ao meu, ainda todo sujo, logo que saiu da minha barriga. Não sabia quanto tempo ela teria de vida; então, ali mesmo, disse a ela o quanto a amava e que a amava do jeitinho que ela era.
Nossa princesa resistiu por três dias. Não pude pegá-la no colo, trocar sua fralda, dar-lhe de mamar, sentir seu cheirinho nem lhe fazer cócegas. Havia um bloqueio chamado “incubadora”, da UTI neonatal, entre nós. Restava-me apenas segurar sua mãozinha. Ela se foi, mas a maternidade não foi embora com ela. Sentia-me mãe, a todo momento, mesmo sem tê-la comigo.
Não foi fácil. Ainda há horas que não o é. Cada Dia das Mães era um sofrimento, uma agonia e um aperto no peito. Cheguei a deixar de ir à Missa, nessa data, para não ver as homenagens e não sofrer com elas. Sentia-me merecedora delas, mas não concordava em recebê-las a não ser pelas mãos da minha filha que se foi.
O tempo foi passando, mas ela sempre esteve presente em nossa vida. Em 2010, eu e o Diogo, finalmente, recebemos o sacramento do matrimónio. Nós fomos morar em São Paulo e nossa vida sofreu várias mudanças. No ano passado, depois de cinco anos, decidimos que era hora de tentar, de novo, e dar um irmãozinho ou uma irmãzinha para a Maria Eduarda.
Com a vinda do Papa Francisco ao Brasil, aproveitei para ir até ele e pedir sua intercessão, a fim de que nos ajudasse a conquistar esse sonho, assim como outros que pareciam distantes de nós. No dia 24 de Julho, quando ele celebrou a Santa Missa, no Santuário de Aparecida, eu corri para lá, com a minha mãe e a minha tia, um dia antes. Passamos a noite ao frio, apanhámos chuva, enfrentámos a fome e uma fila quilométrica para tentar participar da Celebração Eucarística dentro do santuário. Mesmo sem saber se conseguiríamos entrar, fui entregando aquele momento como penitência, como sacrifício. Mal sabia eu que minha princesa já estava em meu ventre.
A notícia chegou, com uma alegria sem fim, uma semana depois; ao mesmo tempo, veio uma insegurança. Afinal, somos humanos e, mesmo confiando em Deus e em Seus planos, temíamos que algo de ruim pudesse acontecer novamente. Mas o Senhor nos presenteou com uma gestação saudável de outra menina: a Valentina. Ansiosa como os pais, ela não esperou as 40 semanas e veio ao mundo no dia 3 de Abril deste ano, com 2.980 kg e 48 cm, à 37ª semana gestacional. Mais um presente de Deus em nossa vida!
Ainda estamos extasiados com a chegada dela, e não nos cansamos de a olhar e namorar.
Sinto-me realizada em poder fazer tudo o que prevê o papel de uma mãe: amamentar, pegar no colo, beijar, cheirar, abraçar, trocar fralda, dar banho, fazer cócegas, massagear e até chorar junto com ela.
Não vejo a hora de comemorar o Dia das Mães este ano, pois sei que terá um gostinho mais que especial, já que, agora, tenho uma filha aqui comigo, cuidando de mim na Terra; e uma filha no Céu, cuidando da minha alma, intercedendo por mim e pela nossa família.
Aliás, estou a comemorar o facto de ser mãe novamente desde o dia três de Abril.
Que Nossa Senhora, Mãe imaculada de Deus e nossa, abençoe todas as mães, principalmente as “mães de UTI” e aquelas que perderam os seus filhos.
Kellen Reis