A Família
E quando já não há perspectiva de cura?
- 26-07-2016
- Visualizações: 290
- Imprimir
- Enviar por email
E quando já não há perspectiva de cura?
Encarar uma doença grave como o cancro é algo extremamente exigente, física e emocionalmente. Não apenas para quem está doente, mas também para a família inteira, para todos os que estão ao redor. Vivenciar tão de perto a doença acaba por nos deixar um pouco doentes também. As coisas mais simples do dia a dia tornam-se complexas e desafiadoras.
Meu pai estava no quarto ciclo de quimioterapia, reagindo muito bem ao tratamento e com alta médica prevista para os próximos dois meses. Estava ainda mais debilitado em consequência do enfrentamento da doença, agressiva e destruidora. Mas, surpreendentemente forte e determinado, de ânimo resoluto e vontade tenaz. Tinha a certeza de que passaria por tudo aquilo e ficaria bem.
No meio dessa feliz expectativa, fomos impactados, como quem sente um piano caindo sobre si, com a notícia de que o seu cérebro estava praticamente tomado e já não havia mais nada a fazer. Radioterapia, quimioterapia, cirurgia…NADA resolveria o problema. E assim, da noite pro dia, o meu pai tornou-se um paciente terminal.
Atordoados por esta “sentença de morte” fomos sendo orientados pela equipa médica dos próximos passos, de tudo o que estaria para vir e que, apesar do “nada” em termos de tratamento curativo, havia muito que ser feito. Era preciso dar-lhe o máximo conforto possível.
Conforto? Soava contraditória demais esta palavra. Queríamos muito mais: a possibilidade de tratamento, a esperança de cura, toda e qualquer melhora mesmo que levasse muito tempo e independentemente dos esforços que fossem necessários. Queríamos a certeza de tê-lo muito mais tempo ao nosso lado. Mas isso nunca esteve nas nossas mãos, tão pouco nas mãos dos médicos. Foi preciso encarar a realidade com fé.
O meu pai precisava de cuidados especiais. Necessitava ainda mais da nossa presença e da força do nosso amor. Passámos a ser de tudo um pouco: cuidadores, motoristas, enfermeiros, nutricionistas, médicos. Seriam minutos, horas, dias, semanas…. a gente perde a noção do tempo e muda a forma como o conta. Só tínhamos o “hoje” e ele precisava de ter um valor de eternidade para nós.
A verdade é que não somos preparados para perder alguém, mesmo sabendo que a morte chega a todos. A doença traz muito sofrimento, mas também é uma visita de Deus à nossa vida, que faz emergir, como que um vulcão em erupção, os nossos valores, as nossas virtudes, o nosso caráter. Revela o que temos de mais nobre, revela a nossa alma.
Ali, em família, com a mãe e os meus irmãos, foi preciso ter uma das conversas mais duras de toda a nossa vida. Foram muitas lágrimas, daquelas que saem grossas e ininterruptas. Na mesma “sala rosa” que sempre foi o nosso lugar de encontro, o cenário familiar de tantas outras conversas, de grandes notícias, de celebrações, sempre junto do pai e da mãe. Só que agora sem ele e para tomarmos decisões juntos, por ele, e para um apoiar o outro diante do drama que vivíamos. A nossa escolha: amar muito, amar “tudo”, amar até ao fim. A nossa meta tornou-se oferecer-lhe o melhor de todos os confortos: voltar para casa e lá ser cuidado até ao seu último suspiro, dando o que tantas vezes recebemos dele e, de modo especial, preservando a sua dignidade de ser humano.
Passámos muitos dias, também o Natal e Ano Novo no hospital e, por fim, conseguimos, com muito esforço e correria, orçamentos e ligações, e com todo o suporte da equipa médica, transformar a sala de casa num verdadeiro quarto de hospital.
“Pai, onde estamos?”. “Estamos em casa”, disse ele, com aquela voz rouca e fraquinha. Esta resposta foi como que um feixe de luz a iluminar os nossos corações.
Ele não deixou de ser quem é por estar naquela cama hospitalar no meio da sala, usando sonda e recebendo soro. Mesmo sem o controle das suas faculdades ou quando foi perdendo a consciência, ele continuava a ser o João da minha mãe, o nosso “grandão”, o “Jhon”… continuava a ser o esposo, o pai, o sogro, o tio, o cunhado, o grande amigo. Tudo se foi e ficou só ele, na limitação da condição humana, mas na grandiosidade do seu “ser”, na sua essência, naquilo que ele plantou e cultivou em cada um. De facto, isso nem a doença ou morte são capazes de roubar. É o que fica para sempre, pois foi construído ao longo da vida em cada gesto, atitude, palavra e assim edificado no profundo do coração, no íntimo de nossas almas.
Fomos amados e amámo-lo até ao fim.