A voz dos Bispos
O Bispo do Porto na Solenidade de Cristo Rei
- 24-11-2009
- Visualizações: 378
- Imprimir
- Enviar por email
Para que o Evangelho aconteça entre nós!
Celebrar Cristo Rei é descobrir a sua realeza e definir-se nela como súbdito do seu amor. É também acrescentar-se na única realidade que verdadeiramente nos aumenta, ou seja, na caridade de Cristo.
Cristo é Rei e o seu Reino somos nós, porque a Ele nos referimos e porque as nossas vidas são agora o exercício do seu amor. Exercício expansivo, na propagação crescente da sua verdade no mundo; exercício convincente, pois só a sua palavra perdura; exercício empolgante, porque só a sua comunhão satisfaz.
Como no diálogo entre Jesus e Pilatos, onde tudo se define e distingue, no que ao Reino diz respeito: “Disse-lhe Pilatos: ‘Então tu és rei?’ Jesus respondeu-lhe: ‘É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz’”.
Pilatos representava ali os reinos deste mundo, concretizados no Império Romano, grande sobre todos os demais. Reinos que podemos considerar naturais, porque naturalmente nascemos da sociedade para a sociedade. É por isso “natural” que a vida política e civilizada nos integre a todos e que participemos nela com a maior responsabilidade e entrega ao bem comum.
Pilatos era o rosto e o gesto do seu grande império, naquela remota Judeia. E ali estava diante do jovem Jesus, indagando-o sobre uma insinuada realeza que lhe levantava dúvidas e algum cuidado. Realeza que se tornara acusação, como se Jesus pretendesse uma concorrência impossível com o maior poder do mundo: “ – Tu és rei?”.
Não admira a pergunta de Pilatos, ciosos que são os poderes em geral dos seus próprios exclusivos. Roma no mundo e um qualquer Herodes ali por perto chegavam e sobravam como poder real ou fictício…
Deveras surpreendente foi a resposta de Jesus. Admira-nos ainda hoje, não só pelo que afirma, mas muito mais pelo que inova. E inova tão absolutamente que sempre nos abre à total novidade do que seja um povo – o seu povo.
“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”: quer isto dizer que o Reino de Cristo se consolida por si mesmo, pela pessoa única que ele é e pela relação definitiva em que nos inclui.
Parecerá ténue tal definição. No entanto, foi e é tão consistente que subsistiu à ruína do império que Pilatos representava, como à de tantos que se sucederam depois, pouco ou nada assentes na verdade que Jesus trazia.
Na verdade que ele próprio era, como continua sendo. O Reino de Cristo não é formal ou teórico, como se lhe aderíssemos por mera adequação mental. Não dispensando tal dimensão, a verdade de Cristo é, antes de mais, a da sua própria pessoa, enquanto revelação de Deus, na humanidade que quis compartilhar connosco. Acolhendo-o, experimentaremos também o que podemos ser a partir dele.
Como explicita um exegeta clássico: “A missão de Jesus consiste em trazer a plenitude da revelação, dando-se a conhecer como Filho de Deus. […] A ‘palavra’, acolhida pelo homem, fá-lo-á reviver interiormente […]. Há-de deixar-se influenciar e plasmar pela luz da verdade, a palavra divina, que nele trabalha como semente, água viva, bálsamo perfumado, para lhe dirigir o coração para Cristo. É este o inteiro desenvolvimento progressivo da vida da fé, mediante a acção do Espírito que faz frutificar e crescer no homem a vida nova. É isto que significa ‘ser da verdade’, como disse Jesus a Pilatos: ‘Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz’” (Ignace de La Potterie, La Pasión de Jesus según San Juan, Madrid, BAC, 2007, p. 67-69).
Esta a verdadeira significação de estarmos aqui, caríssimos irmãos e irmãs, seguros e firmes pela realeza de Cristo, no convencimento e na retribuição absoluta das nossas vidas à sua pessoa e à sua causa. Estamos todos, sem arredar pé nem muito menos o coração do que nos incumba como coerência de vida ou risco de missão, ambiente a ambiente, tarefa a tarefa, na variedade unificada de tantos carismas, movimentos ou grupos. Tudo Igreja, como corpo de Cristo. Tudo Reino, em dimensão absorvente e expansiva.
São ainda do mesmo exegeta estas considerações estimulantes: “A nova comunidade em torno de Cristo é uma relação existencial em duas direcções: ele chama os seus e os seus escutam-no e ele reúne-os à sua volta. Esta é a soberania, a realeza de Cristo na teologia joânica. Realeza que se funda na verdade que ele revela aos homens. A única maneira de entrar no reino é abrir-se a esta verdade, deixar-se plasmar por ela. Cristo exerce a sua própria soberania sobre os seus na medida em que eles se deixam recriar como filhos de Deus” (ibidem, p. 71).
- Que programa este, caríssimos irmãos e irmãs! Mas todo de Cristo como sua acção pelo Espírito e apenas nosso como acolhimento e correspondência. Filhos de Deus para a salvação do mundo, esta é a dinâmica do Reino de Cristo.
No pequeno núcleo que aderiu à verdade dita e feita de Jesus Cristo inaugurou-se finalmente o reino. “Finalmente” porque o retardámos antes, “finalmente” porque não há outro, sabemo-lo bem. Um reino consolidado nos corações e nas consciências, pleno de originalidade e sentido. E de tal modo assim foi e continua a ser, que toda a contradição que se lhe oponha, mesmo aparentando novidade, é realmente velha e degradante, como facilmente se veria.
Espanta e espanta muito ainda agora, ver apresentados como “progressos” alguns retrocessos que seriam, em termos de civilização e de cultura. Isto em relação à vida e à sua dignidade, isto em relação à família e à complementaridade homem-mulher em que se funda, isto em relação à morte e à naturalidade e companhia em que deve suceder… Dificuldades em qualquer destes campos, todos as reconhecemos e queremos levar de vencida. E possibilidades de o fazer, temos nós disponíveis e abertas pela graça de Cristo, mil vezes experimentada.
Do segundo século do seu Reino chegou-nos um testemunho admirável, mais válido porventura ainda agora. É um escrito cristão em meio pagão, pleno de convicção e de coragem. E encontra a melhor forma de dizer o que somos, os cristãos, e havemos de ser no meio do mundo. Duma actualidade evidentíssima, citou-o várias vezes o Concílio Vaticano II, trazendo para hoje o que apareceu há tantos séculos em Alexandria do Egipto. Releiamo-nos então com estas frases: “Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. […] Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. […] Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo. A alma está em todos os membros do corpo e os cristãos estão em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo; também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo” (A Diogneto, V-VI, Lisboa, Alcalá, 2001, p. 51-55).
Como a alma no corpo, assim os cristãos no mundo… Alma no corpo, semente na terra, luz na escuridão: - Quantas imagens e que força nos trazem para a expansão do reino, em palavras certas e vidas comprometidas! Recomecemos, irmãos e irmãs, recomecemos hoje e sempre, para que a nossa cidade e o nosso mundo recomecem também, na verdade que Cristo é e lhes oferece, através de cada um de nós, em quem já reina!
O estarmos aqui, celebrando vivamente a realeza de Cristo, ultrapassa em muito o cerimonial e o preceito. Para cada um de nós é compromisso e para Cristo Rei contentamento, que certamente tem em nos ver assim, infindamente gratos porque nos salva e absolutamente disponíveis para alargar as fronteiras do seu reino. Como cantava há décadas o “velho” hino da Acção Católica Portuguesa, são muitos e novos os “caminhos não andados que esperam por alguém”.
Caríssimos irmãos que vos dispondes ao diaconado permanente; caríssimos catequistas que desempenhais um serviço de primeira linha no alargamento e aprofundamento do Reino; caríssimos leigos militantes, de vários movimentos e grupos, que uma actualíssima tradição reúne neste dia em torno de Cristo Rei: como sabeis, o alargamento do Reino significará na nossa Diocese e muito proximamente a Missão 2010. – Conto convosco, contemos todos com todos e cada um, porque antes de mais conta Deus connosco, para que o Evangelho aconteça entre nós, tão original como sempre e tão urgente como o é agora!
Sé do Porto, 22 de Novembro de 2009
+ Manuel Clemente