A voz dos Bispos
"Sinais dos tempos" hoje, na sociedade e na Igreja em Portugal
- 20-06-2010
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Conferência do Cardeal-Patriarca de Lisboa nas Jornadas Pastorais da CEP
«Sinais dos tempos» hoje, na sociedade e na Igreja em Portugal
Introdução
1. A obrigação de estar atento aos “sinais dos tempos” para intuir os caminhos da missão, em cada tempo e circunstância concretos, é dos maiores desafios pastorais do Concílio Vaticano II, o que melhor define a maneira de conceber a presença da Igreja na sociedade e a sua missão de salvação.
Logo no início, o Concílio rejeitou um texto condenatório dos erros da sociedade contemporânea. O Concílio não se reunia para condenar, mas para anunciar a salvação. A verdade da Igreja na sociedade é a de enviada a anunciar a salvação, o que supõe que a Igreja participa do ardor e do amor salvífico de Jesus Cristo por uma humanidade em processo de salvação. Só amando o mundo se podem captar os sinais que a realidade emite, para que a Igreja intua caminhos concretos de missão. A Gaudium et Spes é a Constituição Pastoral que exprime esta perspectiva que inspirou todo o Concílio. A começar, afirma: “O Concílio, testemunha e guia da fé de todo o Povo de Deus, reunido por Cristo, não poderia dar uma prova mais eloquente de solidariedade, de respeito e de amor ao conjunto da família humana, a que este Povo pertence, que fazer prova de diálogo com ela sobre os diferentes problemas, iluminando-os à luz do Evangelho e pondo à disposição do género humano o poder salvífico que a Igreja, conduzida pelo Espírito, recebe do seu Fundador”. E acrescenta: “para levar a bom termo esta tarefa, a Igreja tem o dever, em cada momento, de perscrutar os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho”.
E no capítulo sobre a dignidade da vocação humana, insiste: “Movido pela fé, sabendo-se conduzido pelo Espírito do Senhor que enche o Universo, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nos anseios do nosso tempo, de que participa com todos os outros homens, quais são os verdadeiros sinais da presença ou desígnio de Deus”.
2. Não é um convite à simples análise sociológica, mas à intuição profética. O verbo escolhido é importante: trata-se de “perscrutar”, o que lembra a atitude dos profetas que estavam à espreita, para perceber nos acontecimentos o modo e a circunstância do seu anúncio. Só da fé e do amor salvífico de Deus pode brotar essa “intuição”, esse “perscrutar” dos sinais, que indicam portas abertas ao anúncio da salvação e do desígnio de Deus para a humanidade. “A fé esclarece todas as coisas com uma luz nova”, uma fé que nos revela o amor salvífico de Deus pela humanidade, e a certeza que nunca a abandona através da acção do Espírito que enche toda a terra. Perceber a sua missão de natureza visível com esta acção invisível do Espírito em toda a humanidade, é desafio contínuo, dirigido à Igreja.
“Sinais dos tempos” e nova Evangelização
3. Há uma convergência entre este dever da Igreja de “perscrutar”, na realidade do mundo, os “sinais” do Reino de Deus, e o desafio lançado por João Paulo II de uma “nova evangelização”, aliás presente na Evangeli Nuntiandi de Paulo VI. O que a distingue da simples re-evangelização, é um novo ardor que nos ajudará a descobrir os “novos métodos”, isto é, um modo novo de anunciar. Este novo ardor é o do amor salvífico, da paixão amorosa pela salvação do mundo. Sem amar o mundo com este amor ardente, não haverá “nova evangelização”, e esse amor é participação no amor infinito de Jesus Cristo, que oferece continuamente a sua vida pelo Povo que redimiu e pelo mundo que ama.
Uma nova atitude perante a sociedade
4. Este é um ponto prévio para uma leitura actual dos “sinais dos tempos”: olhar o mundo com amor e com esperança. Podemos cair, facilmente de mais, na atitude de condenação da sociedade actual. Mas é possível amar o mundo sem concordar com o mundo. O anúncio cristão pode, por vezes, ser uma denúncia, embora deva ser, sobretudo, anúncio. Mas se começa pela denúncia, corre o risco de nunca ser anúncio.
Este olhar construtivo sobre a sociedade, por parte da Igreja, tem como fundamento duas dimensões: a certeza da fé que Deus ama o mundo e que o Espírito Santo está em acção, levando muitos homens e mulheres a buscarem a rectidão de consciência, a lutarem pela justiça e pela defesa da dignidade do homem, a procurarem para a sociedade caminhos de dignidade, de generosidade e de solidariedade; e que os valores explicitamente enunciados na doutrina da Igreja não são apenas afirmados, mas vividos e postos em prática na luta por uma sociedade renovada. O Santo Padre deixou-nos essa mensagem: “De uma visão sábia sobre a vida e sobre o mundo deriva o ordenamento justo da sociedade. Situada na história, a Igreja está aberta a colaborar com quem não marginaliza nem privatiza a essencial consideração do sentido humano da vida. Não se trata de um confronto ético entre um sistema laico e um sistema religioso, mas de uma questão de sentido, à qual se entrega a própria liberdade”. Mas adverte-nos: “Viver na pluralidade de sistemas de valores e de quadros éticos, exige uma viagem ao centro de si mesmo e ao cerne do cristianismo para reforçar a qualidade do testemunho até à santidade, inventar caminhos de missão até à radicalidade do martírio”.
Esta atitude aberta e dialogante é afirmada por Bento XVI ainda no avião a caminho de Lisboa, falando da dialéctica entre secularismo e fé: “A dialéctica entre secularismo e fé tem uma longa história em Portugal. Já no século XVIII há uma forte presença do Iluminismo. Basta pensar no nome Pombal. Assim, vemos que Portugal viveu sempre, nesses séculos, na dialéctica que, naturalmente hoje, se radicalizou e se mostra com todos os sinais do espírito europeu de hoje. Este parece-me um desafio e uma grande possibilidade. Nesses séculos de dialéctica entre Iluminismo, secularismo e fé, nunca faltaram pessoas que quiseram estabelecer pontes e criar um diálogo, ainda que, infelizmente, a tendência dominante foi a da contraposição e da exclusão de um e de outro. Hoje, vemos que justamente esta dialéctica é uma chance; que devemos encontrar uma síntese e um diálogo profundo e de vanguarda”.
Esta atitude dialogante da Igreja perante a sociedade real, com os seus valores e os seus desvios, não pode significar uma cedência. Em todas as circunstâncias, a Igreja deve anunciar a perspectiva evangélica, os próprios atropelos à verdade, à justiça, e à dignidade do homem são ocasião desse anúncio, antes, exigem esse anúncio, que não pode ser apenas denúncia negativa, mas afirmação do nosso empenho no progresso da humanidade. Se nos limitarmos à denúncia a nossa voz pode ser facilmente interpretada como mera tomada de posição política e ser vítima de fundamentalismos. E estes, sejam de matriz religiosa ou ideológica, acabam sempre por roçar a intervenção política na defesa de posições pessoais ou grupais, isolando a verdade que defendem da verdade fundamental que é o amor salvífico de Deus. Esquecem facilmente que por detrás de um erro, se podem abrir portas a outras dimensões da verdade.
Novas formas de intervenção da Igreja na sociedade
5. Frente à actual realidade da sociedade portuguesa, ouso ter um pressentimento: é preciso encontrar formas novas de intervenção da Igreja na sociedade. A Igreja faz parte integrante do todo da sociedade e dada a qualidade da sua mensagem e o número dos seus membros, não pode deixar de procurar formas sempre novas para contribuir para o bem da comunidade humana em que está integrada.
Estamos a cair na situação anacrónica que qualquer intervenção da Igreja, de modo particular da hierarquia, em dimensões fundamentais como o são uma sã antropologia ou a defesa de valores éticos é facilmente julgada como intervenção na esfera do estritamente político, esquecendo que o domínio político é todo o interesse pelo bem da “polis”. É preciso valorizar a Igreja como o conjunto dos fiéis, a comunidade crente, e não a identificar só com a hierarquia. Esta, por decisão própria e em defesa do carácter específico do seu ministério, abstém-se habitualmente de se imiscuir no âmbito do estritamente político. Mas os cristãos leigos não são a isso obrigados e devem ser porta-vozes, no seio da sociedade, dos autênticos valores cristãos. Aliás, pressinto que virá dos leigos a energia para esta renovação da intervenção da Igreja na sociedade. O Santo Padre, dirigindo-se aos Bispos, sublinha a importância decisiva de um “laicado maduro”: “Os tempos que vivemos exigem um novo vigor missionário dos cristãos chamados a formar um laicado maduro, identificado com a Igreja, solidário com a complexa transformação do mundo. Há necessidade de verdadeiras testemunhas de Jesus Cristo, sobretudo nos meios humanos, onde o silêncio da fé é mais amplo e profundo: políticos, intelectuais, profissionais da comunicação que professam e promovem uma proposta mono-cultural com menosprezo pela dimensão religiosa e contemplativa da vida. Em tais âmbitos, não faltam crentes envergonhados que dão as mãos ao secularismo, construtor de barreiras à inspiração cristã”.
A intervenção profética da Igreja na sociedade contemporânea tem de privilegiar a proclamação de uma correcta antropologia, levando à descoberta do mistério do homem, de que decorre a defesa ética dos princípios da convivência humana, em ordem à construção duma sociedade fraterna. Este desafio antropológico esteve fortemente presente na palavra do Papa entre nós. Referindo-se à contribuição da Igreja no “ordenamento justo da sociedade”, explicita: “Situada na história, a Igreja está aberta a colaborar com quem não marginaliza a essencial consideração do sentido humano da vida”. Esta sã antropologia tem de integrar a dimensão transcendente da vida humana, “integrar a fé e a racionalidade moderna numa única visão antropológica, que completa o ser humano e torna, desse modo, comunicáveis as culturas humanas”.
Só desta compreensão do homem e da sua transcendência brota uma ética da convivência para a construção da sociedade. A exigência ética envolve toda a existência humana, pessoal e comunitária, a vida e o amor, o trabalho e a economia.
Aprofundar o conhecimento do mistério e da dignidade do homem, donde decorre uma visão ética da vida, supõe um esforço acrescido de formação do laicado. A doutrina social da Igreja continua a ser a grande desconhecida. Só esse aprofundamento cultural formará a consciência dos cristãos sobre todas as dimensões da vida humana, pessoal e comunitariamente considerada. É impressionante verificar a pouca importância que a dimensão ética tem nas escolhas políticas. E no entanto, em democracia participativa, o voto deveria ser sempre a escolha de uma consciência bem formada e esclarecida. A Igreja deve lutar por isso, o que não significa o imiscuir-se no estritamente político. Esse esforço de formação será uma luta pela liberdade.
Atenção a quantos buscam o sentido da vida
6. O texto da Gaudium et Spes, já citado, refere como contexto do dever de discernir os “sinais dos tempos” a necessidade de a Igreja responder “de forma adaptada a cada geração, sobre as questões eternas dos homens acerca do sentido da vida presente e futura e das suas relações recíprocas”.
Esta busca do sentido é, hoje, a maior expressão da densidade da existência humana, diria mesmo, do drama humano. O que é a vida, o que é o amor, que sentido tem o sofrimento? As mutações sociais, que não é possível referir aqui, adensaram este drama do sentido, relativizaram as respostas adquiridas e transmitidas, lançaram dúvidas sobre a porta a que se deve bater para encontrar uma resposta. Encontro um pequeno eco desta inquietação nas muitas mensagens que me são dirigidas, procurando uma resposta, exigindo que a Igreja seja uma resposta.
Ler os “sinais” para que a Igreja seja a resposta adaptada a cada geração. Sinto que muitos já não procuram, espontaneamente, a resposta da Igreja, na sua acção institucional. Será que as nossas estruturas de acolhimento estão preparadas para essa resposta, adaptada à geração presente? Apesar de tantos “pastores” e de a acção da Igreja dever ser toda pastoral, esta multidão, como no tempo de Jesus, continua a parecer “um rebanho sem pastor”.
O texto do Concílio fala, depois, das questões eternas do sentido da vida presente e futura e das suas relações mútuas. É preocupante a evolução na nossa sociedade e mesmo entre os cristãos, sobre a fé na vida eterna. Muitos já não acreditam nela e mesmo os que não a excluem não fazem dela o objectivo mobilizador da esperança e não fazem a relação dessa esperança com o sentido da vida presente. Ouçamos, mais uma vez, a palavra do Papa entre nós. Falando aos sacerdotes e consagrados, disse-lhes: “Na acção apostólica e na missão, tendeis para a Jerusalém Celeste, antecipais a Igreja escatológica, firme na posse e contemplação amorosa de Deus-Amor. Como é grande, hoje, a necessidade deste testemunho! Muitos dos nossos irmãos vivem como se não houvesse um Além, sem se importar com a própria salvação eterna. Os homens são chamados a aderir ao conhecimento e ao amor de Deus, e a Igreja tem a missão de os ajudar nesta vocação. Bem sabemos que Deus é senhor dos seus dons; e a conversão dos homens é graça. Mas somos responsáveis pelo anúncio da fé, da totalidade da fé, e das suas exigências”.
Neste aspecto, ler os “sinais” é ter a coragem de rever a qualidade e o ritmo da formação cristã no seu todo, desde a catequese à pregação.
Nas respostas a dar a esta busca do sentido, adaptadas a cada geração, sou particularmente sensível ao universo juvenil. No seu todo eles buscam respostas, sem sequer rejeitar aprioristicamente a resposta de Jesus Cristo, mas não a encontram nas respostas da Igreja, ou porque nem sequer a escutam ou porque não a compreendem. É preciso dar-lha de forma que a compreendam e lhes toque o coração. O Papa falou-lhes e comoveu muitos: “Jovens amigos, Cristo está sempre connosco e caminha sempre com a sua Igreja, acompanha-a e guarda-a, como Ele nos disse: «Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20). Nunca duvideis da sua presença! Procurai sempre o Senhor Jesus, crescei na amizade com Ele, comungai-O. Aprendei a ouvir e a conhecer a sua palavra e também a reconhecê-l’O nos pobres. Vivei a vossa vida com alegria e entusiasmo, certos da sua presença e da sua amizade gratuita, generosa, fiel até à morte de cruz. Testemunhai a alegria desta sua presença forte e suave a todos, a começar pelos da vossa idade. Dizei-lhes que é belo ser amigo de Jesus e que vale a pena segui-l’O. Com o vosso entusiasmo, mostrai que, entre tantos modos de viver que hoje o mundo parece oferecer-nos – todos aparentemente do mesmo nível –, só seguindo Jesus é que se encontra o verdadeiro sentido da vida e, consequentemente, a alegria verdadeira e duradoura”. Ler os “sinais” é aceitar o desafio de rever profundamente a nossa pastoral juvenil.
Atenção amorosa ao sofrimento dos nossos irmãos
7. No texto da Gaudium et Spes, ler os “sinais” faz-se numa atenção privilegiada ao sofrimento humano, aos aspectos por vezes dramáticos da vida de tantos homens e mulheres do nosso tempo. É assim que começa a Constituição Pastoral: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens deste tempo, sobretudo dos pobres e daqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
A cultura contemporânea tende a mitigar ou mesmo a esconder estas angústias e tristezas, porque se criou o paradigma de uma organização social que tudo resolve. A Igreja deve ser a aliada natural de quem sofre, a doença, a pobreza, a solidão, não apenas para os servir mas para aprender com eles o que significa o “Evangelho anunciado aos pobres”.
A resposta social da Igreja é, como sabemos, volumosa e estruturada. Não é agora o momento de a analisar. Quero apenas referir dois desafios que nos deixou o Santo Padre: a prática da compaixão e a análise das nossas instituições sociais, em busca da sua especificidade e autenticidade evangélica. Aconselha-nos a ter a atitude do bom samaritano. Há um modo próprio de os cristãos se abeirarem do sofrimento dos irmãos: ter “um coração que vê”, um coração que vê onde há necessidade de amor e age em consequência. A pastoral da caridade é uma pastoral de proximidade, de vizinhança. É perante a circunstância concreta de uma pessoa que tem nome, que o coração do cristão se comove.
As nossas estruturas, dando relevo aos aspectos organizativos e de competência técnica, podem ofuscar este “coração que vê”. O Santo Padre alertou-nos para isso: “Muitas vezes, porém, não é fácil conseguir uma síntese satisfatória da vida espiritual com a acção apostólica. A pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado sobre a lei do mais forte, sobre o lucro fácil e fascinante, acaba por influir sobre o nosso modo de pensar os nossos projectos e as perspectivas do nosso serviço, com o risco de esvaziá-los da motivação da fé e da esperança cristã que os tinha suscitado. Os pedidos numerosos e prementes de ajuda e amparo que nos dirigem os pobres e marginalizados da sociedade impelem-nos a buscar soluções que estejam na lógica da eficácia, do efeito visível e da publicidade. E todavia a referida síntese é absolutamente necessária para poderdes, amados irmãos, servir Cristo na humanidade que vos espera. Neste mundo dividido, impõe-se a todos uma profunda e autêntica unidade de coração, de espírito e de acção”.
E o Papa não hesita em pedir-nos que façamos uma profunda reflexão sobre as nossas instituições, que pretendem ser a expressão da caridade da Igreja: “No meio de tantas instituições sociais que servem o bem comum, próximas de populações carenciadas, contam-se as da Igreja Católica. Importa que seja clara a sua orientação de modo a assumirem uma identidade bem patente: na inspiração dos seus objectivos, na escolha dos seus recursos humanos, nos métodos de actuação, na qualidade dos seus serviços, na gestão séria e eficaz dos meios. A firmeza da identidade das instituições é um serviço real, com grandes vantagens para os que dele beneficiam. Passo fundamental, além da identidade e unido a ela, é conceder à actividade caritativa cristã autonomia e independência da política e das ideologias (cf. Bento XVI, Enc. Deus caritas est, 31 b), ainda que em cooperação com organismos do Estado para atingir fins comuns”.
Aceitemos o desafio da Gaudium et Spes
8. A leitura dos sinais dos tempos não pode ser, apenas, um tema sugestivo e interessante. É, sobretudo, um desafio profético de quem reage com amor à realidade da história. É a solicitude salvífica que nos faz estar atentos, à espreita, para captar “sinais”, aberturas à mensagem de salvação. “Sinais dos tempos”, são alertas emitidos da profundidade da realidade humana e do âmago da nossa história. Não são conclusões sociológicas, mas “sinais” do Reino. Como dizia o P. Congar, naqueles tempos conciliares, é o homem, na sua realidade, a bater à porta da Igreja, pedindo-lhe que lhe abra o Evangelho na página que ele precisa de ler naquele momento. A sua própria realidade torna-o capaz de a escutar.
Procurar novos caminhos de renovação pastoral é incompleto sem esta ousadia profética, embora saibamos que, como o oráculo profético, a leitura dos “sinais dos tempos” não é programável nem previsível. Conseguimos apenas identificar as características da fé e da vida eclesial que hão-de tornar possível essa leitura.
Antes de mais temos de ter consciência, sobretudo nós os clérigos, que a Igreja é o Povo de Deus, que os leigos têm um papel decisivo na renovação da Igreja e que também são chamados a ler os “sinais”. Isto exige de nós, pastores, que inculquemos neles a paixão por Jesus Cristo, a urgência da salvação, a ousadia da santidade. O Papa disse-nos isso, a nós Bispos, acerca dos leigos de quem somos pastores: “Mantende viva a dimensão profética sem mordaças no cenário do mundo actual, porque «a palavra de Deus não pode ser acorrentada» (2Tm 2, 9). As pessoas clamam pela Boa Nova de Jesus Cristo, que dá sentido às suas vidas e salvaguarda a sua dignidade. Como primeiros evangelizadores, ser-vos-á útil conhecer e compreender os diversos factores sociais e culturais, avaliar as carências espirituais e programar eficazmente os recursos pastorais; decisivo, porém, é conseguir inculcar em todos os agentes evangelizadores um verdadeiro ardor de santidade, cientes de que o resultado provém sobretudo da união com Cristo e da acção do seu Espírito”.
A proclamação da fé, a nossa e a de todos os cristãos, tem de ter a força de um testemunho. Mais uma vez, a palavra do Santo Padre: “Quando no sentir de muitos a fé católica deixa de ser património comum da sociedade e, frequentemente, se vê como uma semente insidiada e ofuscada por «divindades» e senhores deste mundo, muito dificilmente aquela poderá tocar os corações, graças a simples discursos ou apelos morais e menos ainda a genéricos apelos aos valores cristãos. O apelo corajoso e integral aos princípios é essencial e indispensável. Todavia a mera enunciação da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho d’Ele”.
É preciso restituir à Igreja o seu dinamismo pastoral, isto é, fazer da Igreja toda sacramento da bondade de Cristo Pastor. A pastoral não é apenas a arte de programar, mas a manifestação, no concreto da história, do amor de Jesus Cristo pelos homens. Mas é decisivo que os sacerdotes redescubram, no exercício do seu ministério, o modelo do Pastor. Trabalhamos mais do que amamos, criamos estruturas mas quando as pessoas precisam do pastor, nós estamos ocupados. Como diz João no Apocalipse, escutemos o que Cristo diz aos pastores das Igrejas (cf. Apoc. 1,19 e 2,1ss).
Fátima, 16 de Junho de 2010
†JOSÉ, Cardeal-Patriarca