Diocese do Porto
Homilia do bispo do Porto nas Ordenações
- 13-07-2010
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Homilia do Bispo do Porto na Missa das Ordenações
Pedindo a Deus a compaixão de Cristo
Estimados irmãos e irmãs, caríssimos ordinandos
Nunca acabaremos de ouvir o Evangelho do Bom Samaritano. Nunca acabaremos de cumprir a ordem com que Jesus o concluiu: “Então vai e faz o mesmo!”
Rendido à evidência da história contada pelo Mestre, o doutor da lei acabara por dar a resposta: próximo fora o que tivera compaixão do homem maltratado. A proximidade é uma virtude activa, movida pela compaixão; sendo esta a capacidade de partilhar o sofrimento dos outros, ajudando-os a superá-lo. O “bom samaritano”da humanidade inteira é o próprio Deus que, em Cristo, assume e supera o sofrimento do mundo. Na caridade de Cristo, outra não pode ser a atitude da Igreja, que só assim se justifica e apenas desse modo evangeliza.
E a própria descrição do homem maltratado, como Jesus a faz na parábola, facilmente se aplica à humanidade contemporânea. Diz-se que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores; diz-se que lhe roubaram tudo o que levava; que o espancaram; que se foram embora, deixando-o meio morto…
Sair da cidade e pôr-se estrada fora, era na altura sujeitar-se a todos os perigos. Ainda hoje, abandonar vizinhanças e convivências pode significar menos segurança e apoio. Assim estamos nós, nesta primeira geração que hesita em dizer de que terra é, pois tantos são de muitas, sucessiva ou simultaneamente, sem se situarem realmente em nenhuma. E muitos dos que mantêm a residência pouco permanecem nela, ou aí ficam sozinhos, nas grandes solidões urbanas. Descendo duma cidade para outra, aquele homem ficou pelo caminho, não encontrando companheiros, apenas salteadores, que lhe interromperam tragicamente o percurso.
Tinham mãos os salteadores, como as têm hoje. Mas não são mãos de dar, são mãos de roubar bolsas e vidas. Roubaram-lhe tudo o que levava, que no seu caso seria material. Nos caminhos solitários que tantos percorrem hoje, os assaltos são permanentes e não roubam apenas coisas. Rouba-se a transparência dos novos, rouba-se a sabedoria dos velhos; rouba-se o ideal dos jovens, rouba-se o sustento dos adultos; roubam-se disponibilidades, sonhos e projectos…
Não falo em abstracto. Refiro aspectos precisos, como a escassa educação para os valores essenciais da verdade, da bondade e da beleza; refiro a pouca prioridade que se dá à família, como célula base do organismo social, onde se possa aprender com espaço e tempo o convívio intergeracional, a complementaridade masculino – feminino, a memória das coisas e a solidariedade essencial; refiro o pouco respeito pela dignidade da pessoa humana, que não pode ser lesada pela sobrevalorização da imagem, a exorbitância da moda, a secundarização dos menos hábeis ou habilitados, ou a banalização da pornografia, do mau gosto e dos maus consumos. Falo de realidades assim, como podia juntar tantas outras, que assaltam e roubam as pessoas no que têm e no que são, sobretudo porque as apanham sós ou solitárias, mesmo que rodeadas por multidões anónimas.
Depois espancaram-no e deixaram-no meio morto… Já lhe tinham roubado tudo, agora impediram-no de recuperar fosse o que fosse, de os denunciar porventura. E, ainda aqui, não falta actualidade, trágica actualidade, pois muita gente agredida fica também incapaz de protestar, de recuperar, de se refazer. – Quanta honra perdida, quanta dignidade ferida, nalgum excesso mediático que nunca se desfaz, mesmo que contraditado! – Quanto desânimo irrecuperável, quanto motivação desfeita, quanto propósito desconsiderado, porque – como se ouve – “assim não vale a pena”!
Trágicos caminhos, grandes solidões, enormes desamparos… E aí fica a humanidade de tantos e tantas, na valeta das nossas indiferenças… Até que passe um “samaritano”, que – na exuberância das atitudes da parábola – realmente veja e repare, se compadeça e aproxime, trate e ligue as feridas, transporte, abrigue e cuide… Felizmente são muitos os samaritanos, mesmo que não sejam bastantes. Neles, Cristo se reconhece e neles se reconstroem as vidas. Só assim.
Estimados irmãos e irmãs, caríssimos ordinandos: Seria difícil encontrar um trecho evangélico tão oportuno como este para a presente celebração. Um presbítero é sacramento de Cristo pastor; um diácono é sacramento de Cristo servidor. Assim mesmo os constitui o Espírito, na Igreja e para o mundo. E ambas as definições, pastoreio e serviço, traduzem-se em compaixão, aproximação e cuidado dos outros.
No vosso caso especial – e para estímulo da Igreja toda no mesmo sentido – tocou-vos e impregnou-vos a compaixão de Cristo pela humanidade geral e de cada um. Mantende-vos e acrescentai-vos sempre nela, na compaixão de Cristo, constante e bom Samaritano. E, como na parábola, levai à estalagem quantos encontrardes, garantindo-lhes presente e futuro.
A estalagem da parábola, local de acolhimento e cura, é identificada com a Igreja, a comunidade cristã. Nela, caríssimos ordinandos, vos podereis identificar também com o estalajadeiro e com o seu encargo de tratar bem aos que chegam.
Prioridade da nova evangelização que agora urge, é percorrer todos os caminhos, recuperar todos os sós e abatidos, recolhê-los em comunidades de hospitalidade e serviço. Os primeiros cuidados do Samaritano foram com azeite e vinho, e assim continuariam com o estalajadeiro, segundo o uso do tempo. O azeite lembra a luz e o vinho a última ceia. Não faltem eles nas nossas comunidades, com a luz da Palavra e o vinho da Eucaristia, a que especialmente vos destinais, caríssimos ordinandos, para o serviço dos irmãos.
A urgência é grande, todos a sentimos. Sentem-na também os que nos esperam, mesmo sem o saberem. Em especial agora, caríssimos amigos, quando a vossa ordenação faz certamente eco às palavras que o Santo Padre nos disse, aqui bem perto, na memorável manhã de 14 de Maio último. Retomo brevemente algumas, que podem ficar como lema do ministério que ides receber. Ditas a todos os baptizados, responsabilizam muito particularmente os ministros ordenados, a quem as comunidades cristãs são confiadas: “Esta é a missão inadiável de cada comunidade eclesial: receber de Deus e oferecer ao mundo Cristo ressuscitado, para que todas as situações de definhamento e morte se transformem, pelo Espírito, em ocasiões de crescimento e vida. […] Nada impomos, mas sempre propomos […]. Temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro: seria morrer a prazo, enquanto presença de Igreja no mundo, que aliás só pode ser missionária, no movimento expansivo do Espírito”. E ainda, especificando novas modalidades da missão e a respectiva incidência: “O campo da missão ad gentes apresenta-se hoje notavelmente alargado e não definível apenas segundo considerações geográficas; realmente aguardam por nós não apenas os povos não-cristãos e as terras distantes, mas também os âmbitos socioculturais e sobretudo os corações, que são os verdadeiros destinatários da actividade missionária do Povo de Deus”.
Exortava Moisés o antigo povo com palavras de totalidade e entrega: “Converter-te-ás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma”. Certamente começastes por aqui, caríssimos ordinandos, pela consagração do vosso coração ao Deus vivo, que tomastes como absoluto. Pelo princípio começastes e esse será também o vosso fim, sem fim.
Não compreenderá nada do ministério ordenado – como nada compreenderia duma vida verdadeiramente baptismal – quem nada conhecesse desta linguagem do amor de Deus, quando toma conta duma pessoa. Se aqui estais, se daqui a pouco vos prostrareis ao canto das Ladainhas, é porque o vosso coração foi, é e será atraído pelo coração de Deus, ou seja por Deus amor, sempre vivo, irradiante e total.
A certa altura descobristes que, no vosso caso, esta realidade é de tal modo intensa em si mesma que quase dispensa mediações, que sentiríeis como concorrência: a graça do celibato significa isso mesmo e dará ao vosso ministério a totalidade do amor e da entrega, assinalando junto daqueles que servirdes que realmente, definitivamente, “só Deus basta”. Por isso caríssimos ordinandos, mesmo não dispensando nem vos dispensando de cultivar sãs amizades com os vossos colegas e outros irmãos, cultivai antes de mais e sempre a amizade com Deus, que tudo garante e sustenta e é a verdadeira fonte da missão da Igreja.
Como cristãos, sabeis que o amor de Deus ganhou rosto e figura em Jesus de Nazaré, o Cristo de todos e para todos. É essa, aliás, a qualidade do amor, que sempre e dalgum modo se configura a quem ama. Na meditação de cada dia, aproximai-vos mais e mais de Cristo, como em cada página evangélica se manifesta. É o vosso Cristo, como, também por vós, o será de todos. Dessa aproximação tirareis o fruto da autêntica amizade. E vivereis dos seus sentimentos, que se podem traduzir numa palavra, a mais urgente: compaixão.
Sim, caríssimos ordinandos: compaixão, coração condoído e solidário com as necessidades dos outros, que por isso mesmo se faz próximo, se adianta e auxilia. Como ao samaritano da parábola, vejamos a Jesus: “Um samaritano, que ia de viagem, passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão”. O único êxito e sucesso, a única excelência e qualidade que o vosso ministério certamente alcançará garantem-se exclusivamente aqui: na compaixão de Cristo, continuada em vós, para bem de todos.
Por isso vos deixo – como se vos deixasse tudo – a exortação precisa e tão fácil de concretizar, como indispensável de acontecer: que não passe um dia, não decorra seja o que for, sem que peçais a Deus a compaixão de Cristo. É ela a condição bastante e indispensável para tudo o mais que felizmente acontecerá no vosso sagrado ministério.
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 11 de Julho de 2010