Diocese do Porto
Entrevista a D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
- 13-07-2007
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O Primeiro de Janeiro, 8 de Julho de 2007
Diocese do Porto atravessa a maior crise de sempre
A crise de vocações na Igreja, o desemprego, o uso do preservativo e a interrupção voluntária da gravidez, são alguns dos temas que o recém nomeado Bispo do Porto aborda, sem tabus, nesta entrevista. D. Clemente demonstra que é na Igreja que está a verdadeira solidariedade, porque emerge da sociedade. “O pior que pode acontecer a um país é descarregar tudo na administração pública, isso seria a desresponsabilização geral.”
Maria José Guedes
Hoje é dia de ordenações na Diocese de Porto. Sr. Bispo, quantos padres é que vão ser ordenados? Esse número demonstra, efectivamente, a crise de vocações que a Igreja está a atravessar. Isto, se pensarmos que existem, na Diocese do Porto, mais de dois milhões de católicos, 477 paróquias ou equiparadas e apenas 348 sacerdotes, sendo que na sua maioria têm mais de 70 anos.
A resposta é desde já muito esclarecedora. Não vou ordenar nenhum padre da Diocese do Porto. Vou ordenar padres que são de ordens religiosas, de institutos religiosos, missionários mas que não ficam ao serviço da Diocese do Porto, a não ser ocasionalmente quando cá estejam. Vou ordenar apenas um diácono da Diocese do Porto.
Há uma crise grande que se sente mais nuns sítios do que noutros, mas aqui no Porto sentimos muito, até porque com esses números tão eloquentes que acabou de citar, cerca de centena e meia de sacerdotes encardinados na Diocese do Porto para quase 500 paróquias, ou realidades semelhantes, e muitos deles acima dos 70 anos, 80 e 90anos, há párocos na Diocese de Porto com mais de 90 anos, que têm uma responsabilidade enorme, por isso podemos e devemos falar de uma crise.
Reflexo de quê? Falta de actualização da Igreja perante os novos tempos, novas necessidades?
É reflexo de muita coisa e eu até gostaria de alargar um bocadinho o âmbito para se poder perceber melhor que é aqui na nossa Europa, na nossa Europa Central e Ocidental que se destaca a crise. Não se trata de uma crise generalizável a todo o mundo, antes pelo contrário. As últimas estatísticas que a Santa Sé apresentou, relativas aos últimos anos na Igreja em todo o mundo, nos cinco Continentes, mostra que esta crise, com estes números, com estes quantitativos, é própria da Europa Central e Ocidental.
É que o número de padres e de seminaristas, o número de religiosas, nos outros Continentes, quer em África, ou na Ásia, é uma coisa espantosa, onde aliás o catolicismo é tão minoritário, o saldo é positivo. Agora na Europa Central e Ocidental é diferente, e tem que ver com a profunda mudança social e cultural e económica, e de mentalidades. Tem a ver por exemplo com a própria base das vocações que são as famílias, que hoje são cada vez menos numerosas. A generalidade desses países, a começar pelo nosso, estão naquilo a que eufemisticamente se chama o crescimento negativo ou, melhor, se chamaria um decréscimo tremendo. Assim, em famílias com muito poucos filhos ou sem filhos é mais difícil que surjam aquelas vocações que tradicionalmente surgiam quer para o sacerdócio quer para a vida religiosa e, concretamente, em sociedades de muita tradição religiosa como era o caso da nossa. Os pais, mães, avós, todos eles tinham gosto e criavam ambiente, falavam disso aos filhos e às filhas, quer em relação ao sacerdócio quer à vida religiosa, e por isso quer os noviciados quer os seminários menores existiam e até com muita fartura. E dos muitos que entravam alguns chegavam ao sacerdócio ou à vida religiosa.
Aqui na Diocese do Porto a crise é a maior de sempre?
Sim, nós neste momento, no seminário do Porto, no seminário Maior, no seminário da Sé, com os seminaristas que temos e que estão muito bem motivados, e preparados, gostei muito de falar com cada um deles, mas isto garante o quê? Garante que nos próximos sete anos, dessa fonte, do nosso seminário, sairá um número, e vou ser optimista, um número de 20 novos padres. Ora, nos próximos sete anos, pela ordem natural das coisas e pela idade do clero que referi, possivelmente o dobro já não estará ao serviço. Isto significa que mais paróquias vão ser entregues a menos padres e claro que isto não estica até ao infinito.
Mas as paróquias não podem fechar…
Não podem fechar, mas como dizia aqui há algum tempo um padre, ficarão reduzidas aos «serviços mínimos» no que diz respeito ao padre.
Já pensou em recrutar padres estrangeiros?
Pode acontecer, mas não é a resposta. Uma Igreja como é a do Porto, tão pujante nas suas diversas manifestações, não pode viver de recurso a igrejas que teriam de ser Igrejas do antigo terceiro mundo, porque as europeias, todas elas, têm falta de clero, tirando um ou outro caso que possa vir para aqui. Esta crise tem que ser resolvida, porque é real, mas tem de ser dentro da própria Igreja do Porto. Temos de ser todos nós, as comunidades cristãs, a inteirarem-se mais de que este problema está aqui para resolver, repito, tanto no que diz respeito ao sacerdócio como no que diz respeito à vida religiosa feminina, que também atravessa uma grande crise.
Será que esta crise pode dar alguma abertura para que dentro de algum tempo as mulheres poderem também celebrar missa?
Sinceramente com a nossa tradição católica, não vejo. Nós católicos temos uma tradição de dois mil anos, e não só, também os nossos irmãos ortodoxos, em que sublinhamos muito o carácter sacramental destas funções, desta ordem; no caso, é algo que perpetuamos na ligação do que aconteceu com os apóstolos. Jesus escolheu apóstolos, também havia mulheres que colaboravam com Jesus, e vemos nelas já o prenúncio do que viria a ser a vida religiosa, que é tão importante para a vida da Igreja como o sacerdócio masculino, e é mais nesta diversificação de funções que eu vejo a nossa tradição caminhar. Agora aqui, sim, e fortemente e muito mais, é preciso que nós todos na comunidade cristã, quer sejam os padres, quer sejam os diáconos, que esses sim e em geral são homens casados, quer sejam as religiosas e os religiosos que colaboram na vida das dioceses, quer os leigos nos diversos ministérios e serviços laicais que também têm que ser muito mais valorizados, para que a Igreja apareça desta corresponsabilidade, é assim que nós cresceremos todos. Até porque eu entendo, não só eu obviamente, mesmo a maior parte dos padres do Porto a quem já falei pessoalmente, e todos nós temos essa consciência.
Qual é a sensibilidade dos padres da Diocese do Porto relativamente a esta situação?
Creio que é a consciência de que temos aqui um obstáculo a ultrapassar, mas que terá de ser vencido pela positiva. Ou seja, crescendo todos nas nossas comunidades cristãs em corresponsabilidade.
Não há menos católicos…
Pois não, até porque no Porto existe um laicado pujante, e que porventura ainda está muito longe de desempenhar na Igreja e na comunidade cristã tudo aquilo que o próprio código de direito canónico e que as orientações do Concílio do Vaticano II, há quarenta anos, previam, ou seja, existem muitas possibilidades quer no que diz respeito ao anúncio da palavra, à catequese, em todas as suas formas, quer no que concerne à própria vida litúrgica, e não só como ministro da comunhão. Para já não falar no imenso campo sócio-caritativo, até na ajuda à orientação das comunidades, enfim tudo isso que nós temos aí com essas comissões espantosas que tanto trabalham com os seus párocos para a vida da Igreja. Portanto, nós temos de crescer numa corresponsabilidade tal em que as coisas não fiquem reduzidas apenas ao trabalho do padre. O que não está bem, porque a Igreja é um corpo, como diz S. Paulo, em que todos os membros têm a sua função. E eu julgo que se nós crescermos e aproveitarmos esta falta que é previsível e que se vai acentuar nos próximos anos, de padres, aproveitarmos esta crise como uma oportunidade para crescermos todos em corresponsabilidade, ou seja que as comunidades cristãs ganhem mais consciência de que muitos dos seus membros, homens e mulheres, podem fazer mais coisas dentro da Igreja, tudo se resolve.
É a oportunidade de a Igreja mostrar como se pode dar a volta a mais esta grande dificuldade?
E ultrapassá-la pela positiva neste ganho de corresponsabilidade e de compromisso que depois até favoreça mais o surto das vocações sacerdotais, porque elas ficam mais definidas naquilo que é específico do padre. Hoje o padre faz muitíssimas coisas que não é necessário e muitas vezes nem é conveniente que seja ele a fazer. E quando o padre puder fazer só aquilo que lhe é destinado a fazer, e que na nossa tradição católica tem a ver com a presença na eucaristia, com o sacramento da reconciliação, com o acompanhamento espiritual das pessoas, até define melhor a pessoa do padre e atrairá mais vocações.
Ainda é na Igreja que mais facilmente se consegue ajudar os outros, pelo menos não há burocracia e, por outro lado, se há cada vez menos padres pode também ser interpretado desta forma: afinal a vida de padre afinal não é assim tão atraente…
As duas coisas são verdade. Em primeiro lugar essa observação que na Igreja Católica muito facilmente despontam boas vontades e voluntariado, isso é mais do que evidente. Está-se a praticar o bem por vocação e por entrega, claro que alguns recebem os seus ordenados, porque precisam de viver e, como diz o Evangelho, o trabalhador merece o seu salário, mas além disso a boa vontade realiza-se e há muito serviço gratuito. As pessoas se vão à Igreja é para ouvir o Evangelho, e não há nada no Evangelho que não seja o incentivo à entrega e à generosidade. A Palavra realiza-se, isso é um facto. É o melhor serviço que Igreja faz à sociedade, e concretamente a Igreja em Portugal faz nas suas vinte Dioceses, bem como aqui na do Porto. Ou seja, proporcionar à sociedade, a milhares e milhares de pessoas a quem este género da boa vontade se cumpre. Em relação à vida difícil do padre, é uma vida que só se faz por vocação. É sempre a conversa de Jesus com os seus primeiros discípulos, apóstolos, Ele chega ao mar da Galileia e eles estavam lá na sua vida, eram pescadores, tinham a sua faina, a sua terra, as suas famílias e Jesus o que lhes propõe é que tenham uma outra vida. A vida que é já o sinal daquela vida definitiva a que nós somos chamados. Este é o aspecto sacramental que aludi há pouco, sinal das últimas coisas que Cristo nos traz. Isto abre outro problema, que é a relação entre a própria Igreja e o mundo das religiões em geral.
Como?
A proposta evangélica não é apenas para nós mantermos esta vida assim melhorzinha, ou para a garantirmos com mais continuidade e com mais qualidade de vida, como por aí se diz, porque às vezes não dá qualidade de vida nenhuma, porque o que pede é desgaste e esforço e abnegação. A proposta evangélica é para abrir àquele horizonte definitivo a que Jesus chamava de Reino. Portanto não é para sustentar o que está mas é para anunciar o que vem. E é por isso que nós, na nossa tradição, não nos podemos reduzir àquilo que muitas vezes acontece noutras propostas religiosas, que é enfim prometer o que não podemos prometer. Isso é enganar, e Jesus não engana ninguém. Jesus, quando as pessoas se abeiram dele, diz: se queres resolver os teus problemas, resolve mais além, com mais entrega, dás a tua vida e ganhas. Mas se tu quiseres ganhar a tua vida… perdes. Foi o que Ele fez. Foi até ao fim, morreu e está vivo. E é essa descoberta de que quando Ele deu a vida à morte e continua vivo é que fez a Igreja. Quando alguém é tocado por isto começa a viver realmente como cristão ou cristã. Isso é o que significa sacerdócio, vida religiosa, compromisso de uma comunidade cristã, voluntariado, abnegação. Mas só quando se descobre a proposta de Jesus, é que se dá esse alargamento da vida nas fronteiras novas do Reino. Por isso o que a Igreja propõe é a cruz, que é sempre o que ela tem no meio. Por mais que as Igrejas estejam decoradas, lindíssimas, cheias de talha dourada… no centro está sempre um homem pregado na cruz. É a entrega da vida para a ganhar.
O homem tem esquecido essa missão?
Infelizmente o nosso maior atavismo é virarmo-nos para nós próprios. Esse é que é o problema. Essa é que é a grande crise. Cá estamos agora no Evangelho como proposta para o mundo. Para crentes e não crentes..
Quando foi nomeado Bispo do Porto, pelo Papa Bento XVI, disse que iria conhecer, amar e servir a Diocese do Porto. Desde Fevereiro, dia 22 até hoje, que retrato faz da Diocese?
É o que estou a fazer, retratos. Tenho parado pouco em casa. A Diocese só não me surpreendeu tanto porque já tinha notícias dela; conheço, tenho cá família, há 40 anos que o meu irmão aqui casou, a minha mãe nasceu aqui em Ramalde e sempre me lembrei disso, de modo que não é um desconhecimento total. Tornou-se foi mais denso. O Porto tem 34 Vigararias; assim como as freguesias estão juntas em concelhos, as paróquias estão juntas em Vigararias, e é uma extensa área que começa ali em Vila do Conde e vai até Ovar, Marão…E eu tenho andado a falar com os respectivos párocos e ouvir deles o estado das suas paróquias, e a pouco e pouco a imagem vai-se tornando mais impressiva. O que verifico é o enorme esforço desses párocos, que nalguns casos é heróico, mas também do seu laicado. Há milhares de leigos e leigas que das várias paróquias do Porto dão o seu melhor, o que é uma realidade muito esperançosa. É deste húmus que os outros problemas se resolverão. Para falar do sócio-caritativo, que é assim o mais imediato, se por um azar parassem estas instituições, pararia grande parte da vida e da solidariedade que aqui se desenvolve, seria um terrível pesadelo.
Desde o apoio domiciliário, por vezes substituem o serviço público…
Mas isso nem é um factor negativo, é aliás um caminho de futuro. Agora, falando em termos sociais e mais genéricos, o que está dito, mesmo à luz da União Europeia, através do princípio da subsidiariedade que é um velho princípio da doutrina social da Igreja (aliás, velho não, porque ele ainda nem sequer começou propriamente a implementar-se) os Estados e as organizações públicas têm de se respeitar e promover tudo isto que é espontâneo na sociedade, estes corpos intermédios - das famílias às associações, às instituições que têm um exercício cívico. É muito importante, porque é de uma enorme criatividade social. O pior que pode acontecer a um país é descarregar tudo na administração pública, isso seria a desresponsabilização geral.
Quando se diz que não há movimentos cívicos no nosso País é uma falácia?
Não é de maneira nenhuma assim, e se o Estado e as Instituições públicas quiserem aproximar-se de tudo o que acontece nestas instituições, é um esforço e empenhamento imenso. O Estado está ao serviço disso, não é a sua substituição. Seria uma visão totalitária do Estado e absolutamente antidemocrática se um Estado quisesse absorver toda a iniciativa no campo da sociedade. Iisso seria o fim do Estado e da sociedade.
Apesar de ainda aí haver uns resquícios ideológicos e que às vezes se notam que vão nesse sentido, ou nesse sem-sentido, depois os próprios governantes quer a nível estatal quer autárquico - como agora se diz “no terreno” - vão ao encontro das realidade e reparam quem é que lá está e quem é que chegou primeiro, e quem é que se esforça muito para além da própria vida profissional, e acabam por apoiar.
D. Clemente chegou a dizer que a resolução dos problemas sociais e económicos não pode colocar nunca em causa a dignidade humana. Falo na questão do desemprego.
Essa nota saiu na comemoração dos 25 anos da presença aqui no Porto de João Paulo II, foi um acontecimento inolvidável. O Papa, nessa altura, falou sobretudo para o mundo do trabalho e para os trabalhadores. A insistência do Papa era que o trabalho não era algo de exterior à pessoa, mas era a realização da pessoa e por isso é que na nossa sociedade temos de atender a esta necessidade, antes de mais humana, de possibilitar a realização de cada um através do trabalho. É muito mais do que um problema técnico ou uma contagem simples. Nós somos uma sociedade a vários títulos periférica, temos por isso as dificuldades e facilidades inerentes, porque, claro, nós não estarmos no centro da Europa poupou-nos a duas guerras mundiais desastrosas, mas também nos põe um pouco longe das grandes vias da circulação da economia. Esses grandes rios em que a sociedade se vitaliza não passam por aqui. O que nos faz desenvolver com algum atraso, claro que junto com outros factores que são conhecidos. Não é fácil, mas é bom ter esse horizonte humanista quando se pensa no mundo do trabalho, perceber que o trabalho para cada um é a sua realização, que nesse sentido o desemprego é uma chaga que tem as suas repercussões imediatas na subsistência difícil dessas pessoas, mas é uma chaga para a própria sociedade.
É assustador verificar os números do desemprego a subirem quase que diariamente. Não parece haver travão!
Claro, e depois há outros problemas conexos. Isso depois quer dizer emigração, quer a antiga quer a de agora. Há gente que vai para Espanha porque está mais perto, já não é uma emigração de longo curso que só viria uma vez por ano mas é este vai e vem quinzenal ou mensal que está mas não está, e que desestrutura imenso as famílias, e com problemas de toda a ordem. A educação dos filhos faz-se na relação aos seus pais. Mas não faltarão boas vontades quer a nível local quer regional e nacional para as atender. Tendo tudo isso em conta, e a mensagem que o Papa cá deixou há 25 anos e que eu tive que relembrar recentemente, quando se fala no trabalho está-se a falar na realização a pessoa. Não é um anexo, é essencial.
A educação tem feito correr muita tinta: pais que batem em professores, professores que passam fome… enfim, há uma crise de educação?
Deixe que acrescente duas notas. Primeiro, o abandono precoce da escolaridade, que é um problema gravíssimo porque é comprometer o futuro dessas crianças. Sabemos que sem habilitação contínua, não há futuro no sentido do desenvolvimento, progresso da pessoa e do seu agregado familiar. A outra nota é que muitas vezes se vai para o desemprego porque também não se procuram esquemas de reabilitação profissional. Há, claro, muitas empresas que não têm de facto possibilidade de continuar, também não podem subsistir à custa dos dinheiros públicos. Agora, nós como sociedade, Estado e organização político-social devíamos garantir que a pessoa que fica privada desse posto de trabalho possa integrar um esquema de reabilitação social.
A fracturação da família é o cerne.
Pois, com certeza, porque as sociedade integradas educavam melhor. Onde as pessoas eram mais conhecidas e reconhecidas, onde a família alargada, incluindo avós e outros membros do agregado familiar, estavam ali por perto, onde as pessoas se identificavam por relações de vizinhança real, onde a escola, a Igreja, as colectividades e outras instituições… – e tudo isso estava muito definido, a educação era um esforço conjunto, até havia uma certa honra da terra, família, bairro, da escola nas pessoas de referência que permaneciam mais tempo nesses cargos. A referência ao professor, ao padre, ao médico, à catequista… A nossa sociedade hoje não é assim, por isso as pessoas ficam desarticuladas e menos responsáveis umas pelas outras.
D. Clemente chegou a dizer que as escolas não podem ser vistas como depósitos de crianças.
Pois não. É essa conjugação de factores sociais de integração que hoje não se verifica. Claro que não vamos voltar ao Portugal dos pequeninos, rural, das aldeias, a esse mundo, que já quase não existe e que existirá cada vez menos. Mas isso mais nos deve envolver na busca da subsidiariedade, no tal desenvolvimento dos corpos intermédios, nas tais vitalizações locais e regionais onde tudo isso se torne mais próximo, além de nós já sabermos que depois vivemos «em rede», e por isso estamos integrados proximamente e estamos alargados em termos informáticos, que nos levam a todo o lado e que nos trazem de todo o lado, mas temos de conjugar isso em termos novos sem perder essa base familiar e local.
Por isso é que alertou para a precipitação tecnológica que poderia chegar ao ponto de «matar a vida».
É um alerta muito repetido e quer dizer o quê? Nós os «modernos» falávamos muito em termos de razão científica, havia uma certa racionalidade das coisas. Nós procurávamos elaborar e depois deduzir de leis mais ou menos certas e seguras para que a própria sociedade tivesse uma certa racionalidade. Entretanto, da ciência proveio um grande desenvolvimento tecnológico que às vezes provoca precipitação, quer dizer já é possível tecnicamente fazer ainda antes de cientificamente estar certificado. E já não falo em termos mais filosóficos ou mesmo religiosos, o de perguntar pelo sentido de se fazer isso. A situação do «eu faço e depois logo se vê» não dá bom resultado, porque depois não se vê, ou o que se vê não é bom.
Pode dar-se como exemplo a clonagem?
Cientificamente eles próprios levantam questões que não estão resolvidas. Estamos a avançar rapidamente demais em campos que conhecemos pouco em termos das suas consequências. Quando isso diz respeito à própria pessoa humana, os problemas podem ser gravíssimos. Já para não falar da possibilidade de hoje podermos destruir completamente o mundo, possibilidades que infelizmente já estão no mercado. Essa tal precipitação pode pôr em causa a reflexão ponderada das coisas. Nós temos de ter mais tempo para conversar, para aprofundar os assuntos. Não pode ser tudo tão vertiginoso quando estão em causa as coisas que dizem, directamente, respeito ao presente e futuro da pessoa humana.
É o tempo que a Igreja reclama para reflectir nas coisas… 2000 anos…
A Igreja Católica, como toda a proposta religiosa, tem uma tradição igualmente importante, que é a acção, tudo isso que é sócio-caritativo. Mas a oração, ou seja, a prioridade da paragem, a necessidade da pausa, da ponderação, a adoração, o estarmos diante de Deus e deixarmos que as coisas ganhem um outro sentido, mesmo para além das palavras e das ideias - isto é extremamente importante. Porque é que um dos grandes cavalos de batalha, uma das grandes insistências da Igreja, desde sempre foi o Domingo e o respeito do Domingo? Porquê? E toda aquela tradição ligada ao Sábado dos nosso irmãos Judeus? Porque é absolutamente necessário que o homem, para ganhar o mundo inteiro, não perca a sua alma. É preciso que o Homem se encontre com Deus, com a família, com os parentes, com os outros…, é absolutamente necessário.
Mas cada vez mais é o mercado economicista a tomar conta da vida.
A tomar conta do tempo livre e tornando-o cativo. Às vezes não se trata de sobreviver mas de infraviver, que é ser-se apanhado por uma tal vertigem quase sem retorno.
A Igreja está desactualizada, é uma das críticas que alguns fazem dando como exemplo a proibição do uso do preservativo e a condenação da IVG. Qual é o seu comentário?
A Igreja, nessas questões, só pode ter uma posição religiosa. O que não quer dizer que seja uma posição menos humana, é uma posição humanística até às últimas consequências, ou seja acerca do sentido das coisas. A questão do preservativo como acentuou: dizer-se que, face a toda esta problemática das doenças contagiosas no campo da sexualidade, a solução é o preservativo, é uma resposta frouxa que não pode ser a da Igreja, porque a primeira resposta que a Igreja tem que dar é: o que é que tu como pessoa pensas da tua sexualidade? Já percebeste que a tua sexualidade não é um objecto com que brinques, mas é a tua própria manifestação, é a tua relação com os outros? Tem a ver contigo e portanto não pode ser resolvida como mero expediente. Que, numa situação de grave perigo de contágio, apareça a hipótese do preservativo…, isso é uma coisa que na tua consciência hás-de regulá-la, agora que essa seja a solução para algo que tem a ver com a tua relação, porque não é de objectos que se trata, então se pensas que isso está facilitado com o uso do preservativo, isso é que não pode ser. Em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez, mas pode falar-se em interrupção, quando para aquele ser humano não é interrupção, é a morte definitiva? Porque ele não volta à vida! Alertar para esta realidade é uma função religiosa, porque liga ao fim, à finalidade das coisas e das pessoas, mas também humanística.
Não é pelo facto de a Igreja estar parada no tempo?
Trata-se de dar sentido ao tempo. E para que as coisas sejam racionais. Para que nós pensemos nas coisas em todas as suas componentes e consequências.
O Papa Bento XVI veio recentemente alertar para o facto de haver novas normas e regas para a condução, apontando como pecado a falta de educação, praguejar, gestos obscenos, ultrapassagens perigosas…
Há com certeza nessas indicações algumas direitinhas para os crentes e outras que são gerais. Há pouco falávamos da vertigem, da precipitação da vida contemporânea; é na condução que muitas vezes mais se sentem os efeitos dessa vertigem e precipitação. Nós reparamos e as pessoas dizem que fazem na condução coisas que não fazem na sua vida normal, o que quer dizer que aquilo não é normal. O passo humano não é àquela velocidade. Quando entram nos carros transformam-se nos super…não sei quê. E por isso algumas regras de urbanidade desaparecem, àquela velocidade exterior e até interior, até alguns comportamentos se tornam mais violentos e menos pensados. Portanto, chamar à atenção para uma certa detença, ponderação na condução, sem esquecermos que estamos a fazer um acto cívico e de civilização, é fundamental. Agora, claro que para quem é religioso ainda refere isto à sua relação com Deus, portanto ainda abre mais o horizonte. Tudo que seja prevenir quer em termos de moralidade comum e cívica quer em termos religiosos, para quem tiver essa dimensão na sua vida, prevenir, porque a condução é um assunto muito sério, porque às vezes os números da sinistralidade parecem os de uma guerra nacional e internacional…é excelente. São milhões de pessoas que têm morrido nos últimos anos. Portanto, ainda bem que o Papa está atento a isso.
O Papa acabou com o limbo, porquê?
O limbo era assim uma espécie de estado intermédio, uma espécie de introdução ao Céu, mas ainda não um Céu inteiro, para falar nestes termos algo frustres. O limbo era para todos os que sem culpa pessoal tinham morrido sem baptismo. Era a tentativa de explicar que por um lado a misericórdia de Deus atende a todos, mas que por outro lado é necessário um caminho humano para chegar a essa misericórdia, que passa pela ligação a Jesus Cristo e que é significada e realizada pelo baptismo. Então, para tentar conciliar estas duas coisas os teólogos lá iam dando os seus tratos à inteligência e lá descortinaram essa possibilidade: sim, está na misericórdia divina, mas não estaria tanto como se estivesse baptizado… Claro que esta explicação não é necessária e o Papa acabou por dispensá-la de vez. Creio que o Papa, reconduzindo tudo à misericórdia divina, fez a coisa muito bem.
Qual a mensagem que deixa?
Aos Católicos desejo que sejam mesmo Católicos. Ou seja, com o sentido que a palavra tem de universal. Que vivam a totalidade daquilo que Cristo nos trouxe, quer em termos de oração, de uma vida em relação ao Pai, um Pai-nosso muito bem rezado, que não seja só num minuto, depois que vivam esta vida de Jesus Cristo, como ela nos ficou na vida dos sacramentos, a começar pela eucaristia. Depois que se tornem apóstolos, porque são enviados e testemunhas desta vida nova, que todos temos em Jesus, que a desdobrem em muitas palavras de conforto e de aproximação, esperança. Nós somos testemunhas de uma vida que venceu a morte, não há nenhuma situação que fique de fora disto. E que haja muita alegria no anúncio de Jesus. Muita participação na comunidade cristã, porque ela é a base aí espalhada por todas as paróquias, movimentos e associações, onde as outras pessoas nos podem encontrar. Encontremos todos o nosso lugar na Igreja, para todos, como Igreja, servirmos o mundo. E depois, a todos os nossos conterrâneos nesta grande Diocese do Porto, a certeza de que podem contar com a Igreja do Porto que é uma realidade magnifica que o Espírito de Jesus Cristo não deixa de realizar aqui.