Ave Maria Imaculada... Rezai o Terço todos os dias... Mãe da Eucaristia, rogai por nós...Rainha da JAM, rogai por nós... Vinde, Espirito Santo... Jesus, Maria, eu amo-Vos, salvai almas!

Diocese do Porto

A Igreja em Portugal, hoje

Conferência do Bispo do Porto
ao Colégio Internacional das Equipas de Nossa Senhora

Apresento nesta curta reflexão algumas notas pessoais sobre a relação da Igreja Católica com o Portugal contemporâneo. Uma breve caracterização que me levará a adiantar alguns pontos para o futuro.

Comecemos pelo país, Portugal. Um território com cerca de 90 000 quilómetros quadrados (continente e ilhas), uma população que ronda os dez milhões, imigrantes incluídos. Uma das mais antigas nações europeias (independente desde o século XII), com forte unidade cultural. Uma experiência histórica densa, com grande expansão mundial desde o século XV.

Sofre actualmente das características comuns à Europa: urbanização e sub-urbanização gerais, desagregação da família tradicional, com baixa de casamentos, religiosos e mesmo civis, aumento de divórcios, escassez de filhos e de gente nova.

Culturalmente, oscila entre a globalização e a individualização. Muito maior circulação de informações em todo o tipo de redes, das informáticas às inter-locais, de escolaridade, trabalho e diversão, mesmo para fora do país. Muito maior determinação e vivência individuais, nas escolhas, consumos e planos.

À sociedade maioritariamente fixa de nascimento, crescimento e pertença, vigente até aos anos sessenta do século passado, sucedeu a variedade de “percursos” e territórios, geográficos e mentais. Estamos na primeira geração que hesita quando perguntada de que terra é… Um novo tipo de nomadismo e errância.

Atendamos a alguns números referentes à Igreja Católica em Portugal (cerca de 10 milhões de habitantes): Entre 2000 e 2006, o número de sacerdotes diocesanos baixou de 3159 para 2894. Em média, por dois que morreram ordenou-se apenas um novo… Em 21 dioceses, incluindo a das Forças Armadas, havia, no final de 2006, 2894 padres diocesanos e 1052 padres de Institutos Religiosos, 198 diáconos permanentes, 327 religiosos professos e 5717 religiosas professas, diminuindo estas também. Os seminaristas de filosofia e teologia desceram de 547 diocesanos e religiosos no ano 2000, para 475 em 2006. A percentagem de “católicos” em Portugal situa-se nos 88, 10% (cf. Menos padres em Portugal. Agência Ecclesia. Semanário de Actualidade Religiosa, 15 de Julho de 2008, p. 4). Aliás, quando falamos de dioceses, Lisboa e o Porto juntas têm quase metade da população do país. Variam entre dezenas de milhares e a centena os habitantes dos quatro milhares e meio de paróquias.

Também desde os anos sessenta, os “movimentos” trouxeram algo de novo no modo de incluírem os católicos que lhes aderem. Se até então tinham uma forte referência local, como nas secções paroquiais da Acção Católica, constituem-se agora a partir de adesões inter-pessoais, de ideário e vivência, que geralmente não se confinam a um território específico. São relativamente novos e distintos do que ainda há décadas acontecia como vinculação eclesial. Por isso mesmo, podem encontrar alguma resistência da parte da pastoral tradicional, muito mais localizada.

Também a definição vocacional específica de sacerdotes, diáconos, religiosos e religiosas, bem como o respectivo encaminhamento formativo encontra alterações importantes. Ao grande número de entradas nos seminários menores, como ainda se constatava até há meio século, sucedeu-se o esvaziamento e a quase extinção dessas instituições. Hoje entra-se menos e mais tarde nos seminários, ainda que haja mais persistência depois. Crescem as decisões pessoais e adultas, menos dependentes do envolvimento familiar.

A prática dominical situou-se no último recenseamento (2001) em cerca de 20 % da população portuguesa. Mas a prática menos ritmada é muito maior: em Junho desse mesmo ano, uma sondagem asseverava que mais de 70 % da população praticava uma vez por mês algum acto da sua crença. Há cerca de um mês, uma outra sondagem mostrava que cerca de 70 % dos portugueses continua a incluir o catolicismo na definição nacional.

Portugal dispõe dum grande centro espiritual, verdadeiramente nacional, tanto como internacional. Refiro-me a Fátima e aos seus mais de 5 milhões de peregrinos anuais (com mais de 200 000 confissões). Desde 1917 e crescentemente, esta é uma particularidade do catolicismo português, que se encontra e revê no grande centro mariano. Além das presenças ocasionais, dificilmente definíveis em termos de ortodoxia e ortopraxia, Fátima atrai um crescente número de peregrinos, de variadas condições sociais e culturais; acolhendo, aliás, todo o tipo de celebrações e cursos de índole pastoral, abertos à participação de crentes do país inteiro.

A Igreja em Portugal conta com centenas de associações de fiéis da mais diversa índole, do estritamente “religioso” ao mais abertamente social e sócio-caritativo. É também por aqui que a Igreja Católica mais se aproxima da sociedade e dos seus problemas, como é geralmente reconhecido. No entanto, é crescentemente difícil garantir a sucessão dos responsáveis dessas associações, também por causa das múltiplas deslocações de residência ou trabalho, ou por alguma resistência ao compromisso, tão própria da atmosfera pós-moderna, individualista e errática, geográfica e mentalmente.

Neste contexto, compartilhado pela Europa em geral, aplica-se perfeitamente ao país o que João Paulo II escreveu em 2003, na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, nº 46: “Em várias partes da Europa, há necessidade do primeiro anúncio do Evangelho: aumenta o número das pessoas não baptizadas, […] porque famílias de tradição cristã não baptizaram os filhos devido […] a uma generalizada indiferença religiosa. Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. […] Mesmo no ‘velho’ continente existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes”.

De tudo isto se vê na Igreja portuguesa. A par da habitual acção pastoral, que absorve a maior parte da actividade católica, nas diversas comunidades - catequese e pregação, liturgia e piedade, acção sócio-caritativa -, têm-se tentado algumas iniciativas de nova evangelização e vai-se assumindo a missio ad gentes interna ou, pelo menos, a sua necessidade.

Por “nova evangelização” entendia o mesmo Pontífice, na exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, de 1988, nº 34, o seguinte: “Esta nova evangelização, dirigida não apenas aos indivíduos mas a inteiras faixas de população, nas suas diversas situações, ambientes e culturas, tem por fim formar comunidades eclesiais maduras, onde a fé desabroche e realize todo o seu significado originário de adesão à pessoa de Cristo e ao seu Evangelho, de encontro e de comunhão sacramental com Ele, de existência vivida na caridade e no serviço”.
Em 2005 realizou-se em Lisboa uma sessão do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, onde se pretendeu precisamente propor e redescobrir “Cristo vivo”, como pólo autêntico da vida cristã e eclesial. Para isso, além das sessões gerais de reflexão e testemunho, em torno da problemática da vida nas suas várias acepções, experimentaram-se e verificaram-se várias realizações missionárias na cidade, quer em comunidades que habitualmente as tentam, quer em testemunhos de fé nos espaços públicos, do simples anúncio às manifestações culturais.

Na sessão de Lisboa do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, apurou-se mais a respectiva prática, em dois pontos essenciais: o anúncio é precisamente o de Cristo vivo, como fonte de vida (verdade, bondade e beleza) para as pessoas, as famílias e a sociedade; e anúncio protagonizado por comunidades convictas – paróquias, congregações, movimentos, estabelecimentos de ensino ou saúde, etc. – que testemunham e acolhem a todos, crentes ou descrentes que sejam. E tudo isto com a necessária criatividade e inovação, lembrando a tripla qualificação que João Paulo II fazia da “nova evangelização” (Haiti, 1983): “nova no ardor, nos métodos e nas expressões”.

Ganha-se mais consciência de que a “nova evangelização” tem de reforçar o interesse e o empenhamento nos aspectos éticos (compromisso social e promoção da vida), estéticos (a beleza evangélica nas letras e nas artes) e comunitários (convivência e partilha). Ainda que, em relação a este último ponto sobrem dificuldades e indefinições.

Considero, de facto, que o maior desafio pastoral do catolicismo português para os tempos mais próximos está na inevitável reconfiguração da comunidade cristã. Por um lado, sabe-se e comprova-se que não há iniciação nem crescimento na fé sem comunidade, própria e persistente. Por outro, manifestam-se continuamente as dificuldades em formar e manter comunidades fixas numa sociedade tão fugaz e movediça como a actual. Lembremos, aliás, que as “redes” de comunicação, concretamente televisivas e informáticas, não se definem em termos territoriais.

É aqui que algumas experiências se vão somando na Igreja em Portugal, quer no âmbito da pastoral inter-paroquial e transcomunitária, quer nos movimentos, quer nas famílias. Com a normal resistência da religiosidade arcaica e realmente pré-cristã, que continua a ter como únicos artigos do seu credo “a terra, o sangue e os mortos” – prevalecendo a terra e a capela de cada grupo, os laços do sangue e o descanso dos respectivos falecidos -, as grandes propostas do Concílio Vaticano II vão tendo alguma recepção, como o actual contexto sócio-cultural mais exige.

Efectivamente, um conceito mais correcto e universal da Igreja de Cristo - ainda que vá a par com a sua dimensão particular -, o acolhimento do apelo geral à missão, a afirmação do conteúdo cristológico e trinitário do querigma evangélico, a maior atenção aos “sinais dos tempos”, como apelos do Espírito no coração do mundo actual, tudo vai originando, aqui e ali, novas concretizações de corresponsabilidade, comunhão e testemunho.

São hoje múltiplas as acções de evangelização de grupos, movimentos e famílias, com grande empenho e criatividade laicais. Podem ser famílias que transformam os seus lares em pontos de acolhimento e partilha cristã nos respectivos prédios; podem ser acções conjuntas de evangelização e missão popular, envolvendo paróquias, congregações e movimentos; podem ser novas formas de missão à distância, com geminação de paróquias europeias e ultramarinas; podem ser “sítios” e “blogues” na Internet… De tudo um pouco se vai constatando em Portugal. E também uma considerável presença na Rádio e na Televisão, a nível nacional ou local. Na televisão pública, por exemplo, a Igreja Católica dispõe de vinte e alguns minutos de segunda a sexta-feira, além de um tempo ao Domingo; também na rádio estatal dispõe de algum tempo ao Domingo de manhã. No campo da rádio, o grupo Renascença, da Igreja católica, lidera as audiências.

Estas e outras realidades do catolicismo português contemporâneo revelam a sua considerável vitalidade, mas não resolvem para já o problema pastoral acima indicado, isto é, o da reconfiguração comunitária da vida cristã. Alimenta-se, sem dúvida, um certo lastro cultural católico, que explica a persistente identificação do país com esta tradição religiosa. Facto redobrado com a notável presença da Igreja Católica no campo sócio-caritativo, para crentes e não crentes. Mas a capacidade das paróquias e outros centros comunitários de integrarem uma população cada vez mais fluida nos percursos individuais e familiares é efectivamente reduzida e, nalguns casos, cada vez mais problemática.

Tanto mais que poucos poderão dizer com grande certeza qual será amanhã a própria realização social das existências. A Igreja Católica conheceu uma fase prevalentemente urbana nos seus primeiros cinco séculos, no Império Romano; percorreu depois um longo percurso rural; vive actualmente uma nova concentração urbana, mas muito mais movimentada do que a antiga; podemos até falar de desconcentração ou policentração, variando as estadas, semana a semana ou ao longo do ano, por vários locais.

Pode mesmo dizer-se que muitos dos actuais portugueses são urbanos de semana, rurais de fim-de-semana e litorais de Verão, pois trabalham na cidade, descansam fora dela e vão para a praia no tempo quente… Difícil é assim a ligação persistente a uma comunidade situada, particularmente no aspecto religioso. Mais fácil é, para muitos, individualizarem a prática, indo a sucessivos locais de culto, mesmo a um grande santuário como Fátima, ou praticarem de longe em longe nalgum lugar onde se sintam bem, pela mais diversa e subjectiva ordem de razões.

É neste contexto que a Igreja Católica em Portugal pretende “aproveitar” o Ano Paulino para se redefinir mais e reconfigurar melhor em termos propriamente cristãos. A Conferência Episcopal publicou, nesse sentido, a 6 de Maio último, um documento intitulado Ano Paulino, uma proposta pastoral, onde se sugerem passos em ordem a redescobrir a índole cristológica e eclesiológica da experiência cristã.

Estamos de novo no âmbito da “nova evangelização” como atrás a vimos: “O alargamento do anúncio do Evangelho aos descrentes e aos que abandonaram a vida cristã, supõe evangelizadores com as características exigidas pela nova evangelização. No dizer de João Paulo II, esses evangelizadores têm de ser possuídos de um novo ardor, porque o seu testemunho é um primeiro anúncio de natureza querigmática” (Ano Paulino, nº 4).

Querigma, anúncio de Cristo vivo, como proposta de vida n’Ele. Para tal se proclama a Palavra e se celebram os sacramentos: “O caminho catequético leva, sobretudo, à identificação com Cristo. O baptismo, sacramento pelo qual os que acreditaram em Jesus Cristo, através da Palavra, entram na comunidade dos discípulos, para caminharem em Igreja, consiste em morrer com Cristo, para com Ele ressuscitar. […] É uma caminhada catecumenal, porque aprofunda continuamente a alegria do seu início: a fé em Jesus Cristo e o mergulhar n’ Ele, no Baptismo” (Ano Paulino, nº 5).

Caminho essencialmente comunitário, pois se trata duma autêntica “incorporação”, no grande “corpo” que Cristo forma com todos e cada um dos seus, muito além de qualquer subjectivismo ou alheamento. De novo a insistência paulina: “A união a Cristo, realizada no baptismo, é tão profunda, que a Igreja é a nova dimensão do Corpo de Cristo, a nova fase do mistério da encarnação” (Ano Paulino, nº 6).

Contexto cristológico e eclesial que afasta imediatamente qualquer hipótese de exibicionismo ou protagonismo excessivo, contrariando também um certo gosto “pós-moderno” de originalidade e espectáculo. É sempre com Paulo que o documento da Conferência Episcopal nos lembra: “não há dons do Espírito estritamente para benefício individual, mas são dons para toda a Igreja e só esta é o juiz do seu discernimento” (Ano Paulino, 6).

Nota igualmente importante e urgente é a da implicação de todos na nova evangelização do país. Também neste caso, muito para além da tripartição arcaica – e persistente! - entre “clero, nobreza e povo”, que reservava aos “homens do sagrado” a actuação religiosa, o Ano Paulino levar-nos-á a acolher o ensinamento e a prática do grande Apóstolo: “Paulo percebeu que toda a Igreja é chamada a ser, com os Apóstolos, corresponsável na missão. Agregou ao seu ministério cooperadores zelosos: presbíteros, que ‘trabalham na palavra e na instrução’ (1 Tim 5, 17), cristãos, mulheres e homens, empenhados no ‘trabalho do amor’ (1 Tes 1, 3). No final da Carta aos Romanos refere-se a eles com grande afecto: ‘Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus…’” (Ano Paulino, nº 7).

Assim se sugere, em traço rápido, a situação da Igreja Católica em Portugal, no tempo que corre. Mais do que em situação, podemos falar em “tensão”. É desta que se trata, como num organismo vivo, que espera e arrisca. Sim, apesar das inevitáveis resistências de atavismos vários, ou de algumas desistências face a desafios grandes e desinstalações necessárias, há muita gente católica a redescobrir a substância cristológica do anúncio e da vivência crentes. Há muita gente, de mais ou menos idade, a redescobrir a dimensão eclesial da fé, com antigas e novas formas comunitárias. Ou inovando dentro das antigas, tomando a paróquia como “comunidade de comunidades” e “família de famílias”. Sucedem-se as iniciativas de âmbito interparoquial e diocesano, com participação de seculares e religiosos, famílias, movimentos e grupos, valorizando também o “carisma” e o modo próprios de cada um. Alargam-se os laços inter-missionários, para longe e perto, em reciprocidade nova de presenças e contributos. Arrisca-se e inova-se alguma coisa no campo da cultura e da arte, a partir da Universidade Católica Portuguesa e de outras instâncias eclesiais. Mantêm-se com abnegação e consistência muitas acções no campo sócio-caritativo. Com tudo isto se “lançarão as redes”, mesmo que ainda não divisemos bem a nova malha em que se entrelaçarão.

Fátima, 22 de Julho de 2008

+ Manuel Clemente, Bispo do Porto

 

 

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