REVELAÇÕES DO INFERNOfeitas por SANTO ANSELMO
1.Jazem nas trevas exteriores. Pois, lembrai-vos, o fogo do inferno não emite nenhuma luz. Assim como, ao comando de Deus, o fogo da fornalha babilónica perdeu o seu calor mas não perdeu a sua luz, assim, ao comando de Deus, o fogo no inferno, conquanto retenha a intensidade do seu calor, arde eternamente nas trevas.
2.É uma
tempestade que nunca mais acaba de trevas, de negras chamas e de negra fumaça
de enxofre a arder, por entre as quais os corpos estão amontoados uns sobre os
outros sem uma nesga de ar. De todas as pragas com que a terra dos faraós foi
flagelada, uma praga só, a da treva, foi chamada de horrível. Qual o nome,
então, que devemos dar às trevas do inferno, que hão-de durar não por três dias
apenas, mas por toda a eternidade?
3.O horror desta estreita e negra prisão é aumentado pelo seu tremendo cheiro activo. Toda a imundície do mundo, todos os monturos e escórias do mundo, correrão para lá como para um vasto e fumegante esgoto quando a terrível conflagração do último dia houver purgado o mundo. O enxofre, também, que arde lá em tão prodigiosa quantidade, enche todo o inferno com o seu intolerável fedor; e os corpos dos danados, eles próprios, exalam um cheiro tão pestilento que, como diz São Boaventura, só um deles bastaria para infeccionar todo o mundo.
4.O próprio ar deste mundo, esse elemento puro, torna-se fétido e irrespirável quando fica fechado longo tempo. Considerai, então, qual deva ser o fétido do ar do inferno. Imaginai um cadáver fétido e pútrido que tenha jazido a decompor-se e a apodrecer na sepultura, uma matéria gosmenta de corrupção líquida. Imaginai tal cadáver preso das chamas, devorado pelo fogo do enxofre a arder e a emitir densos e horrendos fumos de nauseante decomposição repugnante. E a seguir imaginai esse fedor malsão multiplicado um milhão e mais outro milhão de milhões sobre milhões de carcaças fétidas comprimidas juntas na treva fumarenta, uma enorme fogueira de podridão humana. Imaginai tudo isto e tereis uma certa ideia do horror do cheiro do inferno.
5.Mas tal fedentina não é, horrível pensamento é este, o maior tormento físico ao qual os danados estão sujeitos. O tormento do fogo é o maior tormento ao qual o demo tem sempre sujeitado as suas criaturas. Colocai o vosso dedo por um momento na chama duma vela e sentireis a dor do fogo. Mas o nosso fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha de vida e para o ajudar nas artes úteis, ao passo que o fogo do inferno é duma outra qualidade e foi criado por Deus para torturar e punir o pecador sem arrependimento.
6.O nosso fogo terrestre consome-se mais ou menos rapidamente, conforme o objecto que ele ataca for mais ou menos combustível, a ponto de a ingenuidade humana se ter sempre entregado a inventar preparações químicas para garantir ou frustrar a sua acção. Mas o sulfuroso breu que arde no inferno é uma substância que foi especialmente designada para arder para sempre e ininterruptamente com indizível fúria. Além disso, o nosso fogo terrestre destrói ao mesmo tempo que arde, de maneira que quanto mais intenso ele for, mais curta será a sua duração; já o fogo do inferno tem esta propriedade de preservar o que ele queima e, embora se enfureça com incrível ferocidade, ele enfurece-se para sempre.
7.O nosso fogo terrestre, não importa que intensidade ou tamanho possa ter, é sempre duma extensão limitada; mas o lago de fogo do inferno é ilimitado, não tem praias nem fundo. E está documentado que o próprio demónio, ao lhe ser feita a pergunta por um soldado, foi obrigado a confessar que se uma montanha inteira fosse lançada dentro do oceano ardente do inferno seria queimada num instante como um pedaço de cera. E este terrível fogo não aflige os danados somente por fora, pois cada alma perdida transforma-se num inferno dentro de si mesma, o fogo sem limites enraivecendo-se mesmo na sua essência. Oh! Quão terrível é a sorte destes desgraçados seres! O sangue ferve e referve nas veias; os cérebros ficam fervendo nos crânios; o coração no peito flamejando e ardendo; os intestinos, uma massa vermelha e quente de polpa a arder; os olhos, coisa tão tenra, flamejando como bolas fundidas.
8.Ainda assim, quanto vos disse da força, da qualidade e da ilimitação deste fogo é como se fosse nada quando comparado com a sua intensidade, uma intensidade que é justamente tida como sendo o instrumento escolhido pelo desígnio divino para punição da alma assim como do corpo igualmente. Trata-se dum fogo que procede directamente da ira de Deus, trabalhando não por sua própria actividade, mas como um instrumento da vingança divina. Assim como as águas do baptismo limpam tanto a alma como o corpo, assim o fogo da punição tortura o espírito com a carne.
9.Todos os sentidos da carne são torturados; e todas as faculdades da alma outro tanto: os olhos com impenetráveis trevas; o nariz com fétidos nauseantes; os ouvidos com berros, uivos e execrações; o paladar com matéria sórdida, corrupção leprosa, sujeiras sufocantes inomináveis; o tacto com aguilhões e chuços em brasa e cruéis línguas de chamas. E através dos vários tormentos dos sentidos a alma imortal é torturada eternamente, na sua essência mesma, no meio de léguas e léguas de ardentes fogos acesos nos abismos pela majestade ofendida de Deus Omnipotente e soprados numa perene e sempre crescente fúria pelo sopro da raiva da Divindade.
10.Considerai, finalmente, que o tormento desta prisão infernal é acrescido pela companhia dos condenados. A má companhia, sobre a terra, é tão nociva que as plantas, como que por instinto, apartam-se da companhia, seja do que for que lhes seja mortal ou funesto. No inferno, todas as leis estão trocadas lá não há nenhum pensamento de família, de pátria, de laços, de relações. O danado grita um com o outro, a sua tortura e raiva intensificam-se pela presença dos seres torturados e enfurecendo-se como ele.
11.Todo o senso de humanidade é esquecido. Os lamentos dos pecadores a sofrerem enchem os mais recuados cantos do vasto abismo. As bocas dos danados estão cheias de blasfémias contra Deus e de ódio pelos seus companheiros de suplício e de maldições, contra as almas que foram seus companheiros no pecado. Era costume, nos antigos tempos, punir o parricida, o homem que havia erguido a mão assassina contra o pai, arremessando nas profundezas do mar num saco dentro do qual também eram colocados um galo, um burro e uma serpente.
12.A intenção destes legisladores, que inventaram tal lei, a qual parece cruel nos nossos tempos, era punir o criminoso pela companhia de animais malignos e abomináveis. Mas que é a fúria destas bestas estúpidas comparada com a fúria da execração que rompe dos lábios tostados e das gargantas inflamadas dos danados no inferno, quando eles contemplam nos seus companheiros em miséria aqueles mesmos que os ajudaram e incitaram no pecado, aqueles cujas palavras semearam as primeiras sementes do mal em pensamento e em acção nos seus espíritos, aqueles cujas sugestões insensatas os conduziram ao pecado, aqueles cujos olhos os tentaram e os desviaram do caminho da virtude? Voltam-se contra tais cúmplices e amaldiçoam-nos. Não terão, todavia, socorro nem ajuda; agora é tarde demais para o arrependimento.
13.Por último de tudo, considerai o tremendo tormento das almas condenadas, as que tentaram e as que foram tentadas, agora juntas, e ainda por cima, na companhia dos demónios. Estes demónios afligirão os danados de duas maneiras: com a sua presença e com as suas admoestações. Não podemos ter uma ideia de quão terríveis são estes demónios. Santa Catarina de Sena uma vez viu um demónio e escreveu que preferia caminhar até ao fim da sua vida por um caminho de carvões em brasa a ter que olhar de novo um único instante para tão horroroso monstro.
14.Tais demónios, que outrora foram formosos anjos, tornaram-se tão repelentes e feios quanto antes tinham de lindos. Escarnecem e riem das almas perdidas que arrastaram para a ruína. É com eles que são feitas, no inferno, as vozes da consciência. Por que pecaste? Por que deste ouvido às tentações dos amigos? Por que abandonaste as tuas práticas piedosas e as tuas boas acções? Por que não evitaste as ocasiões de pecado? Por que não deixaste aquele mau companheiro? Por que não desististe daquele mau hábito, aquele hábito impuro? Por que não ouviste os conselhos do teu confessor? Por que, mesmo depois de haveres tombado a primeira, ou a segunda, ou a terceira, ou a quarta ou a centésima vez, não te arrependeste dos teus maus passos e não voltaste para Deus, que esperava apenas pelo teu arrependimento para te absolver dos teus pecados? Agora o tempo para o arrependimento foi-se. Tempo existe, tempo existiu, mas tempo não existirá mais!
15.Tempo houve para pecar às escondidas, para se satisfazer na preguiça e no orgulho, para ambicionar o ilícito, para ceder às instigações da tua baixa natureza, para viver como as bestas do campo, ou antes, pior do que as bestas do campo, porque elas, ao menos, não são senão brutos e não possuem uma razão que as guie; tempo houve, mas tempo não haverá mais. Deus falou-te por intermédio de tantas vozes, mas não quiseste ouvir. Não quiseste esmagar o orgulho e o ódio do teu coração, não quiseste devolver as acções mal adquiridas, não quiseste obedecer aos preceitos da tua Santa Igreja nem cumprir os teus deveres religiosos, não quiseste abandonar os péssimos companheiros, não quiseste evitar as perigosas tentações. Tal é a linguagem destes demoníacos atormentadores, palavras de sarcasmo e de reprovação, de ódio e de aversão. De aversão, sim! Pois mesmo eles, os demónios propriamente, quando pecaram, pecaram por meio dum pecado que era compatível com tão angélicas naturezas: foi uma rebelião do intelecto e eles. Estes mesmos, têm que se afastar, revoltados e com nojo de terem de contemplar os pecados indizíveis com os quais o homem degradado ultraja e profana o templo do Espírito Santo, e se ultraja e avilta a si mesmo.