Estar - caminhar - ajoelhar

Se quisermos compreender o significado da solenidade do Corpo de Deus, basta observar, simplesmente, os gestos litúrgicos que a Igreja usa para celebrar e viver o sentido desta festa. Para além do que tem de comum com as outras festas cristãs, há três aspectos que exprimem o específico da celebração deste dia festivo.
Temos primeiro a reunião comunitária à volta do Senhor, o estar perante o Senhor e para o Senhor e implicitamente, o estar com os outros.
Depois temos o caminhar com o Senhor em procissão.
Por fim, relacionado com isto, o centro e o ponto culminante de tudo, o ajoelhar perante o Senhor, a adoração e exaltação e a alegria pela sua proximidade. Estar perante o Senhor, caminhar com o Senhor e ajoelhar, são os elementos básicos deste dia. Vamos reflectir sobre cada um deles.
Estar perante o Senhor
A Igreja antiga usava o termo statio para exprimir esta atitude. Recordar esta expressão é tocar ao mesmo tempo as raízes mais profundas do que acontece com a festa do Corpo de Deus e com o seu significado. À medida que o cristianismo se estendia por todo o mundo, os seus mensageiros insistiam em que houvesse em cada cidade um só bispo e um só altar. Assim se devia expressar a unidade de um só Senhor que nos abraça a partir da Cruz, fazendo de todos um só povo, derrubando as fronteiras que a história humana vai construindo. O sentido mais profundo da Eucaristia consiste precisamente em que na medida em que comungamos do mesmo pão, entramos neste dinamismo de um organismo vivo, e nos tornamos o Corpo do Senhor.
A Eucaristia não é assunto privado de um círculo de amigos, num clube de sócios, onde se encontram os que têm interesses afins. A realidade é outra. Assim como o Senhor se deixou publicamente crucificar às portas da cidade, perante os olhares do mundo, assim a celebração eucarística é a liturgia de todos os que o Senhor chama, independentemente da sua condição social.
Pertence à essência da celebração eucarística aquilo que o Senhor fez durante a sua vida terrena: chamados pela sua palavra e pelo seu amor, reuniram-se homens de partidos diferentes, de vários estratos sociais e de vários quadrantes de pensamento. Faz parte da Eucaristia, que no mundo mediterrâneo, onde o cristianismo começou por expandir-se, se juntassem lado a lado o aristocrata que se converteu ao cristianismo, o estivador de Corinto, e o miserável escravo, que segundo o direito romano nem era considerado ser humano, mas uma mercadoria. Faz parte da Eucaristia que o filósofo se sente ao lado do analfabeto, a prostituta convertida e o convertido cobrador de impostos ao lado do asceta, que encontrou o caminho para Cristo.
Podemos ainda ver pelos textos do Novo Testamento, como muitas vezes os homens resistiram a uma tal convivência e se fechavam no seu círculo, ao mesmo tempo que se afirmava o sentido da Eucaristia, que era o de reunir, de vencer as fronteiras e, a partir do Senhor, congregar os homens numa nova unidade.
Quando o cristianismo cresceu em número, a exigência de uma só Eucaristia e de um só altar na cidade, não se podia manter. Já nos tempos da perseguição se formaram em Roma Igrejas locais, precursoras das futuras paróquias. Naturalmente que a celebração que reúne as pessoas, que de outra forma não se encontrariam, continuou pública e aberta a todos. Mas aquele encontro aberto num mesmo espaço já não era tão visível. Daí que se tenha instituído a statio. Isto significava que o Papa, bispo de Roma, sobretudo durante o tempo da Quaresma, celebrava a Eucaristia em todas as igrejas locais, para toda a cidade. Os cristãos reuniam-se, seguiam em conjunto para a igreja e assim, o sentido da universalidade era vivido e sentido em cada uma das igrejas locais.
É esta ideia original que o Corpo de Deus revive. É a statio urbis: Abrimos a igreja paroquial, dirigimo-nos dos vários cantos da cidade e reunimo-nos em nome do Senhor, para, a partir d'Ele, sermos um só. Estamos juntos, apesar das fronteiras de partidos e grupos, somos governantes e governados, homens do mundo do trabalho e da ciência, homens de todos os quadrantes. O essencial, é justamente que o Senhor nos reúna aqui e que nos leve ao encontro uns dos outros. Devia partir deste momento o apelo de nos aceitarmos também no nosso íntimo, de nos abrirmos e irmos ao encontro uns dos outros. Que na dispersão do dia-a-dia conservemos este apelo à comunhão no Senhor.
Estamos conscientes de que as nossas cidades se tornaram em lugares de uma solidão até agora desconhecida. Nunca os homens se sentiram tão sós e abandonados como nos grandes condomínios, ali onde vivem concentrados. Um amigo meu contou-me que alugou um desses apartamentos numa cidade do norte da Alemanha. Um dia saudou um dos vizinhos que ia a sair de um dos apartamentos. Foi com espanto que este o olhou e disse: "Deve estar enganado". Numa sociedade massificada, uma saudação é um equívoco. Mas o Senhor reúne-nos e abre-nos, para que nos aceitemos e nos acolhamos, de forma que, no caminhar para Ele, vamos também ao encontro uns dos outros. Justamente na Praça de Maria (Praça central de Munique), experimentamos esta vivência profunda. Quantas vezes, nos cruzamos aqui sem nos olharmos. Hoje é o lugar do encontro, encontro que continua connosco como graça e missão.
Certamente que há muitas assembleias. Acontece que muitas vezes o que nos une é mais aquilo com discordamos, do que aquilo com que estamos de acordo. E acontece muitas vezes que o interesse que nos une, se dirige contra outros interesses. Mas o que nos une hoje não é um interesse privado de um qualquer grupo, mas o interesse que Deus tem em nós, e no qual nós depositamos todos os nossos interesses. Estamos aqui por causa do Senhor. E quanto mais estivermos com o Senhor e perante o Senhor, tanto mais unidos nos sentimos com os outros e mais cresce em nós a força para nos compreendermos como seres humanos, de nos reconhecermos como irmãos e irmãs, e em conjunto construirmos a humanidade.
Caminhar com o Senhor
Estar com o Senhor em comunidade, teve desde o princípio como consequência também o caminhar para o Senhor. Na vida real, não estamos juntos. A realidade da statio só é possível, se antes nos juntarmos e caminharmos em procissão. Este é o segundo desafio do Corpo de Deus. Só nos podemos aproximar, só podemos chegar ao Senhor se nos dispusermos a sair e a ir ao encontro, vencendo os nossos preconceitos, os nossos limites e bloqueios, e sairmos em direcção ao local do encontro. Isto aplica-se tanto ao âmbito eclesial como ao âmbito mundano.
Ainda hoje conhecemos na Igreja - que Deus nos perdoe - a separação, as divisões, a desconfiança. Processio, procedere, colocar-se a caminho para Ele, submeter-se aos seus critérios, na fé comum no Deus feito homem, que se nos oferece como pão, é um desafio à confiança renovada uns nos outros, à abertura aos outros, para nos deixarmos conduzir por Ele.
A procissão, que já na antiga Roma fazia parte da celebração do encontro na statio, deu, efectivamente, uma nova dimensão ao Corpo de Deus, deu-lhe um sentido mais profundo. A procissão do Corpo de Deus não é unicamente um caminhar para o Senhor, para a celebração eucarística, é também caminhar com o Senhor, faz parte da celebração eucarística, é uma dimensão do acontecimento eucarístico. O Senhor, que se tornou o nosso pão é assim sinal e caminho que nos conduz.
Desta forma, a Igreja reinterpreta a história do êxodo, a caminhada de Israel pelo deserto. Israel caminho pelo deserto. Nas miragens do deserto, pode encontrar o caminho, porque o Senhor vai à frente como nuvem e coluna de fogo. Pode viver na aridez das dunas sem vida, porque o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Assim, nesta caminhada pelo deserto revela-se a profundidade de toda a história humana. Israel encontrou uma terra, e depois de a perder continuou a subsistir, porque não se alimentou só de pão, mas encontrou na palavra a força da vida que o conduziu, durante séculos, por todos os becos sem saída e por todos os desterros. Por isso, continua um sinal levantado para todos nós.
O ser humano só encontra caminho, se se deixar conduzir por Aquele que é ao mesmo tempo palavra e pão. Só caminhando com o Senhor, podemos levar a bom termo a caminhada da nossa história. Assim, a festa do Corpo de Deus explica o que é a nossa vida e o que é a história deste mundo: uma peregrinação para a terra prometida, que só pode chegar a bom termo, se caminharmos com Aquele que é pão e palavra no meio de nós.
Sabemos hoje, mais que em tempos passados, que na realidade toda a vida neste mundo e a história dos homens é movimento, uma mudança permanente e um caminhar contínuo. A ideia do progresso transmite-nos um sabor quase mágico. Mas também sabemos, entretanto, que o progresso só pode ter sentido, se nos levar aonde queremos chegar. O movimento em si não é progresso. Pode ser também uma corrida veloz para o abismo. Assim, para que o progresso aconteça, teremos de perguntar pelo seu critério e pelo seu objectivo - e este não pode ser um mero crescimento de produtos materiais.
O Corpo de Deus explica a história. Apresenta-nos Jesus Cristo, feito homem e pão eucarístico, a mostrar-nos o caminho, como critério da nossa peregrinação pelo mundo. Certamente que isso não resolve todos os problemas. Nem é este o sentido do agir de Deus. Para isso, temos a nossa liberdade e as nossas capacidades, que nos pedem esforço, atitude de busca e de luta. Mas o critério fundamental está lançado. Quando Ele é o ponto de referência e a meta do nosso caminhar, está dado o critério, que torna possível a escolha do caminho. Caminhar com o Senhor é sinal e compromisso destes dias.
Ajoelhar perante o Senhor
Por fim, temos o ajoelhar perante o Senhor, a adoração. Porque o Senhor está realmente presente na Eucaristia, a adoração fez sempre parte desta festa. Mesmo que esta forma de celebração só se tenha desenvolvido na Idade Média, não se trata de uma mudança ou desvio, mas a valorização de algo que sempre esteve presente. Na verdade, se o Senhor se dá a nós, recebê-I'O só pode significar prostrar-se, glorificar e adorar o Senhor.
Dobrar o joelho numa atitude de obediência, mesmo hoje, não vai contra a dignidade, a liberdade e a grandeza do ser humano. Quando O negamos e deixamos de O adorar, só nos resta a eterna necessidade da matéria. Então somos verdadeiramente escravos, um grão de poeira que, arremessado no grande moinho do universo, em vão procura conquistar a liberdade. Só se Ele for o criador, então a liberdade é o fundamento de todas as coisas e nós podemos ser livres. A nossa liberdade não é anulada quando se prostra perante Ele, antes é verdadeiramente assumida e torna-se definitiva. Mas neste dia há algo mais. Aquele que nós adoramos, não é um poder distante. Ele mesmo se debruçou sobre nós para nos lavar os pés. Isto transforma a nossa adoração em liberdade, em esperança e alegria, porque nos prostramos perante Aquele que se debruçou a si mesmo. Debruçamo-nos sobre o amor, que não escraviza, antes transforma.
Peçamos ao Senhor, que nos conceda tal conhecimento e tal alegria, para que nós, a partir deste dia, possamos ser luz para a nossa terra e para o nosso tempo.
Temos primeiro a reunião comunitária à volta do Senhor, o estar perante o Senhor e para o Senhor e implicitamente, o estar com os outros.
Depois temos o caminhar com o Senhor em procissão.
Por fim, relacionado com isto, o centro e o ponto culminante de tudo, o ajoelhar perante o Senhor, a adoração e exaltação e a alegria pela sua proximidade. Estar perante o Senhor, caminhar com o Senhor e ajoelhar, são os elementos básicos deste dia. Vamos reflectir sobre cada um deles.
Estar perante o Senhor
A Igreja antiga usava o termo statio para exprimir esta atitude. Recordar esta expressão é tocar ao mesmo tempo as raízes mais profundas do que acontece com a festa do Corpo de Deus e com o seu significado. À medida que o cristianismo se estendia por todo o mundo, os seus mensageiros insistiam em que houvesse em cada cidade um só bispo e um só altar. Assim se devia expressar a unidade de um só Senhor que nos abraça a partir da Cruz, fazendo de todos um só povo, derrubando as fronteiras que a história humana vai construindo. O sentido mais profundo da Eucaristia consiste precisamente em que na medida em que comungamos do mesmo pão, entramos neste dinamismo de um organismo vivo, e nos tornamos o Corpo do Senhor.
A Eucaristia não é assunto privado de um círculo de amigos, num clube de sócios, onde se encontram os que têm interesses afins. A realidade é outra. Assim como o Senhor se deixou publicamente crucificar às portas da cidade, perante os olhares do mundo, assim a celebração eucarística é a liturgia de todos os que o Senhor chama, independentemente da sua condição social.
Pertence à essência da celebração eucarística aquilo que o Senhor fez durante a sua vida terrena: chamados pela sua palavra e pelo seu amor, reuniram-se homens de partidos diferentes, de vários estratos sociais e de vários quadrantes de pensamento. Faz parte da Eucaristia, que no mundo mediterrâneo, onde o cristianismo começou por expandir-se, se juntassem lado a lado o aristocrata que se converteu ao cristianismo, o estivador de Corinto, e o miserável escravo, que segundo o direito romano nem era considerado ser humano, mas uma mercadoria. Faz parte da Eucaristia que o filósofo se sente ao lado do analfabeto, a prostituta convertida e o convertido cobrador de impostos ao lado do asceta, que encontrou o caminho para Cristo.
Podemos ainda ver pelos textos do Novo Testamento, como muitas vezes os homens resistiram a uma tal convivência e se fechavam no seu círculo, ao mesmo tempo que se afirmava o sentido da Eucaristia, que era o de reunir, de vencer as fronteiras e, a partir do Senhor, congregar os homens numa nova unidade.
Quando o cristianismo cresceu em número, a exigência de uma só Eucaristia e de um só altar na cidade, não se podia manter. Já nos tempos da perseguição se formaram em Roma Igrejas locais, precursoras das futuras paróquias. Naturalmente que a celebração que reúne as pessoas, que de outra forma não se encontrariam, continuou pública e aberta a todos. Mas aquele encontro aberto num mesmo espaço já não era tão visível. Daí que se tenha instituído a statio. Isto significava que o Papa, bispo de Roma, sobretudo durante o tempo da Quaresma, celebrava a Eucaristia em todas as igrejas locais, para toda a cidade. Os cristãos reuniam-se, seguiam em conjunto para a igreja e assim, o sentido da universalidade era vivido e sentido em cada uma das igrejas locais.
É esta ideia original que o Corpo de Deus revive. É a statio urbis: Abrimos a igreja paroquial, dirigimo-nos dos vários cantos da cidade e reunimo-nos em nome do Senhor, para, a partir d'Ele, sermos um só. Estamos juntos, apesar das fronteiras de partidos e grupos, somos governantes e governados, homens do mundo do trabalho e da ciência, homens de todos os quadrantes. O essencial, é justamente que o Senhor nos reúna aqui e que nos leve ao encontro uns dos outros. Devia partir deste momento o apelo de nos aceitarmos também no nosso íntimo, de nos abrirmos e irmos ao encontro uns dos outros. Que na dispersão do dia-a-dia conservemos este apelo à comunhão no Senhor.
Estamos conscientes de que as nossas cidades se tornaram em lugares de uma solidão até agora desconhecida. Nunca os homens se sentiram tão sós e abandonados como nos grandes condomínios, ali onde vivem concentrados. Um amigo meu contou-me que alugou um desses apartamentos numa cidade do norte da Alemanha. Um dia saudou um dos vizinhos que ia a sair de um dos apartamentos. Foi com espanto que este o olhou e disse: "Deve estar enganado". Numa sociedade massificada, uma saudação é um equívoco. Mas o Senhor reúne-nos e abre-nos, para que nos aceitemos e nos acolhamos, de forma que, no caminhar para Ele, vamos também ao encontro uns dos outros. Justamente na Praça de Maria (Praça central de Munique), experimentamos esta vivência profunda. Quantas vezes, nos cruzamos aqui sem nos olharmos. Hoje é o lugar do encontro, encontro que continua connosco como graça e missão.
Certamente que há muitas assembleias. Acontece que muitas vezes o que nos une é mais aquilo com discordamos, do que aquilo com que estamos de acordo. E acontece muitas vezes que o interesse que nos une, se dirige contra outros interesses. Mas o que nos une hoje não é um interesse privado de um qualquer grupo, mas o interesse que Deus tem em nós, e no qual nós depositamos todos os nossos interesses. Estamos aqui por causa do Senhor. E quanto mais estivermos com o Senhor e perante o Senhor, tanto mais unidos nos sentimos com os outros e mais cresce em nós a força para nos compreendermos como seres humanos, de nos reconhecermos como irmãos e irmãs, e em conjunto construirmos a humanidade.
Caminhar com o Senhor
Estar com o Senhor em comunidade, teve desde o princípio como consequência também o caminhar para o Senhor. Na vida real, não estamos juntos. A realidade da statio só é possível, se antes nos juntarmos e caminharmos em procissão. Este é o segundo desafio do Corpo de Deus. Só nos podemos aproximar, só podemos chegar ao Senhor se nos dispusermos a sair e a ir ao encontro, vencendo os nossos preconceitos, os nossos limites e bloqueios, e sairmos em direcção ao local do encontro. Isto aplica-se tanto ao âmbito eclesial como ao âmbito mundano.
Ainda hoje conhecemos na Igreja - que Deus nos perdoe - a separação, as divisões, a desconfiança. Processio, procedere, colocar-se a caminho para Ele, submeter-se aos seus critérios, na fé comum no Deus feito homem, que se nos oferece como pão, é um desafio à confiança renovada uns nos outros, à abertura aos outros, para nos deixarmos conduzir por Ele.
A procissão, que já na antiga Roma fazia parte da celebração do encontro na statio, deu, efectivamente, uma nova dimensão ao Corpo de Deus, deu-lhe um sentido mais profundo. A procissão do Corpo de Deus não é unicamente um caminhar para o Senhor, para a celebração eucarística, é também caminhar com o Senhor, faz parte da celebração eucarística, é uma dimensão do acontecimento eucarístico. O Senhor, que se tornou o nosso pão é assim sinal e caminho que nos conduz.
Desta forma, a Igreja reinterpreta a história do êxodo, a caminhada de Israel pelo deserto. Israel caminho pelo deserto. Nas miragens do deserto, pode encontrar o caminho, porque o Senhor vai à frente como nuvem e coluna de fogo. Pode viver na aridez das dunas sem vida, porque o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Assim, nesta caminhada pelo deserto revela-se a profundidade de toda a história humana. Israel encontrou uma terra, e depois de a perder continuou a subsistir, porque não se alimentou só de pão, mas encontrou na palavra a força da vida que o conduziu, durante séculos, por todos os becos sem saída e por todos os desterros. Por isso, continua um sinal levantado para todos nós.
O ser humano só encontra caminho, se se deixar conduzir por Aquele que é ao mesmo tempo palavra e pão. Só caminhando com o Senhor, podemos levar a bom termo a caminhada da nossa história. Assim, a festa do Corpo de Deus explica o que é a nossa vida e o que é a história deste mundo: uma peregrinação para a terra prometida, que só pode chegar a bom termo, se caminharmos com Aquele que é pão e palavra no meio de nós.
Sabemos hoje, mais que em tempos passados, que na realidade toda a vida neste mundo e a história dos homens é movimento, uma mudança permanente e um caminhar contínuo. A ideia do progresso transmite-nos um sabor quase mágico. Mas também sabemos, entretanto, que o progresso só pode ter sentido, se nos levar aonde queremos chegar. O movimento em si não é progresso. Pode ser também uma corrida veloz para o abismo. Assim, para que o progresso aconteça, teremos de perguntar pelo seu critério e pelo seu objectivo - e este não pode ser um mero crescimento de produtos materiais.
O Corpo de Deus explica a história. Apresenta-nos Jesus Cristo, feito homem e pão eucarístico, a mostrar-nos o caminho, como critério da nossa peregrinação pelo mundo. Certamente que isso não resolve todos os problemas. Nem é este o sentido do agir de Deus. Para isso, temos a nossa liberdade e as nossas capacidades, que nos pedem esforço, atitude de busca e de luta. Mas o critério fundamental está lançado. Quando Ele é o ponto de referência e a meta do nosso caminhar, está dado o critério, que torna possível a escolha do caminho. Caminhar com o Senhor é sinal e compromisso destes dias.
Ajoelhar perante o Senhor
Por fim, temos o ajoelhar perante o Senhor, a adoração. Porque o Senhor está realmente presente na Eucaristia, a adoração fez sempre parte desta festa. Mesmo que esta forma de celebração só se tenha desenvolvido na Idade Média, não se trata de uma mudança ou desvio, mas a valorização de algo que sempre esteve presente. Na verdade, se o Senhor se dá a nós, recebê-I'O só pode significar prostrar-se, glorificar e adorar o Senhor.
Dobrar o joelho numa atitude de obediência, mesmo hoje, não vai contra a dignidade, a liberdade e a grandeza do ser humano. Quando O negamos e deixamos de O adorar, só nos resta a eterna necessidade da matéria. Então somos verdadeiramente escravos, um grão de poeira que, arremessado no grande moinho do universo, em vão procura conquistar a liberdade. Só se Ele for o criador, então a liberdade é o fundamento de todas as coisas e nós podemos ser livres. A nossa liberdade não é anulada quando se prostra perante Ele, antes é verdadeiramente assumida e torna-se definitiva. Mas neste dia há algo mais. Aquele que nós adoramos, não é um poder distante. Ele mesmo se debruçou sobre nós para nos lavar os pés. Isto transforma a nossa adoração em liberdade, em esperança e alegria, porque nos prostramos perante Aquele que se debruçou a si mesmo. Debruçamo-nos sobre o amor, que não escraviza, antes transforma.
Peçamos ao Senhor, que nos conceda tal conhecimento e tal alegria, para que nós, a partir deste dia, possamos ser luz para a nossa terra e para o nosso tempo.