Ano da Misericordia
Bula de Proclamação do Jubileu
- 23-12-2015
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Misericórdiae Vultus
Bula deProclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia
Francisco
Bispo de Roma
Servo dos Servos deDeus
A quantos lerem estacarta
graça, misericórdia epaz
1. Jesus Cristo é orosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestaspalavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu oseu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, «rico em misericórdia» (Ef 2, 4), depoisde ter revelado o seu nome a Moisés como «Deus misericordioso e clemente,vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade» (Ex 34, 6), não cessou de dar aconhecer, de vários modos e em muitos momentos da história, a sua naturezadivina. Na «plenitude do tempo» (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo oseu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nosrevelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Coma sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela amisericórdia de Deus.
2. Precisamos semprede contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz.É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistérioda Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deusvem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração decada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho davida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre ocoração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nossopecado.
3. Há momentos emque somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar namisericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foipor isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempofavorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunhodos crentes.
O Ano Santoabrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição.Esta festa litúrgica indica o modo de agir de Deus desde os primórdios da nossahistória. Depois do pecado de Adão e Eva, Deus não quis deixar a humanidadesozinha e à mercê do mal. Por isso, pensou e quis Maria santa e imaculada noamor (cf. Ef 1, 4), para que Se tornasse a Mãe do Redentor do homem. Perante agravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão. A misericórdiaserá sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém pode colocar um limite aoamor de Deus que perdoa. Na festa da Imaculada Conceição, terei a alegria deabrir a Porta Santa. Será então uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoaque entre poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dáesperança.
No domingo seguinte,o Terceiro Domingo de Advento, abrir-se-á a Porta Santa na Catedral de Roma, aBasílica de São João de Latrão. E em seguida será aberta a Porta Santa nasoutras Basílicas Papais. Estabeleço que no mesmo domingo, em cada Igrejaparticular – na Catedral, que é a Igreja-Mãe para todos os fiéis, ou naConcatedral ou então numa Igreja de significado especial – se abra igualmente,durante todo o Ano Santo, uma Porta da Misericórdia. Por opção do Ordinário, amesma poderá ser aberta também nos Santuários, meta de muitos peregrinos quefrequentemente, nestes lugares sagrados, se sentem tocados no coração pelagraça e encontram o caminho da conversão. Assim, cada Igreja particular estarádirectamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um momentoextraordinário de graça e renovação espiritual. Portanto o Jubileu serácelebrado, quer em Roma quer nas Igrejas particulares, como sinal visível dacomunhão da Igreja inteira.
4. Escolhi a data de8 de Dezembro, porque é cheia de significado na história recente da Igreja. Comefeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do ConcílioEcuménico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aqueleacontecimento. Começava então, para ela, um percurso novo da sua história. OsPadres, reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeeiro soprodo Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo maiscompreensível. Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinhamencerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar oEvangelho de maneira nova. Uma nova etapa na evangelização de sempre. Um novocompromisso para todos os cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo econvicção, a sua fé. A Igreja sentia a responsabilidade de ser, no mundo, osinal vivo do amor do Pai.
Voltam à menteaquelas palavras, cheias de significado, que São João XXIII pronunciou naabertura do Concílio para indicar a senda a seguir: «Nos nossos dias, a Esposade Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade. AIgreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da verdadeereligiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia demisericórdia e bondade com os filhos dela separados». E, no mesmo horizonte,havia de colocar-se o Beato Paulo VI, que assim falou na conclusão do Concílio:«Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridadee.Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quaisse orientou o nosso Concílio. Uma corrente de interesse e admiração saiu doConcílio sobre o mundo actual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridadeee verdadee exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeitoe do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que, em vez dediagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança; para que oConcílio falasse ao mundo actual não com presságios funestos mas com mensagensde esperança e palavras de confiança. Não só respeitou mas também honrou osvalores humanos, apoiou todas as suas iniciativas e, depois de os purificar,aprovou todos os seus esforços. Uma outra coisa, julgamos digna deconsideração. Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir ohomem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, emtodas as suas necessidades».
Com estessentimentos de gratidão pelo que a Igreja recebeu e de responsabilidade quantoà tarefa que nos espera, atravessaremos a Porta Santa com plena confiança deser acompanhados pela força do Senhor Ressuscitado, que continua a sustentar anossa peregrinação. O Espírito Santo, que conduz os passos dos crentes de formaa cooperarem para a obra de salvação realizada por Cristo, seja guia e apoio dopovo de Deus a fim de o ajudar a contemplar o rosto da misericórdia.
5. O Ano Jubilarterminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 deNovembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animar-nos-ão, antes detudo, sentimentos de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade por nos terconcedido este tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, ahumanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame asua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma históriafecunda com o compromisso de todos no futuro próximo. Quanto desejo que os anosfuturos sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoaslevando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possachegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente nomeio de nós.
6. «É próprio deDeus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a suaomnipotência». Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a misericórdiadivina não seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade daomnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas colectas maisantigas, convida a rezar assim: «Senhor, que dais a maior prova do vosso poderquando perdoais e Vos compadeceis…» Deus permanecerá para sempre na história dahumanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo, providente,santo e misericordioso.
«Paciente emisericordioso» é o binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamentopara descrever a natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontraum reflexo concreto em muitas acções da história da salvação, onde a suabondade prevalece sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular,fazem sobressair esta grandeza do agir divino: «É Ele quem perdoa as tuasculpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida dotúmulo e te enche de graça e ternura» (103/102, 3-4). E outro Salmo atesta, deforma ainda mais explícita, os sinais concretos da misericórdia: «O Senhorliberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta osabatidos, o Senhor ama o homem justo. O Senhor protege os que vivem em terraestranha e ampara o órfão e a viúva, mas entrava o caminho aos pecadores»(146/145, 7-9). E, para terminar, aqui estão outras expressões do Salmista: «[OSenhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes as feridas. (...) O Senhorampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao chão» (147/146, 3.6). Emsuma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidadeeconcreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que secomovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeeiramentecaso para dizer que se trata de um amor «visceral». Provém do íntimo como umsentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência eperdão.
7. «Eterna é a suamisericórdia»: é o refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmotempo que se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia,todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valorsalvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel umahistória da salvação. O facto de repetir continuamente «eterna é a suamisericórdia», como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e dotempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizerque o homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob oolhar misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha queridoinserir este Salmo – o «grande hallel», como lhe chamam – nas festas litúrgicasmais importantes.
Antes da Paixão,Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelistaMateus quando afirma que «depois de cantarem os salmos» (26, 30), Jesus e osdiscípulos saíram para o Monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia,como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamenteeste acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte damisericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amorque se realizaria na cruz. O facto de saber que o próprio Jesus rezou com esteSalmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos aassumir o refrão na nossa oração de louvor diária: «eterna é a suamisericórdia».
8. Com o olhar fixoem Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da SantíssimaTrindade. A missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério doamor divino na sua plenitude. «Deus é amor» (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pelaprimeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este amortornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senãoamor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, quese abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza,sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes eatribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala demisericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.
Vendo que a multidãode pessoas que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu, no fundo docoração, uma intensa compaixão por elas (cf. Mt 19, 36). Em virtude deste amorcompassivo, curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, compoucos pães e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas ascircunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia nocoração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticasque tinham. Quando encontrou a viúva de Naim que levava o seu único filho asepultar, sentiu grande compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas eentregou-lhe de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15). Depoisde ter libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: «Conta tudoo que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti» (Mc 5, 19). A própriavocação de Mateus se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante doposto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Eraum olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e,vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador epublicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o Venerável, ao comentar estacena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus com amor misericordioso eescolheu-o. Sempre me causou impressão esta frase, a ponto de a tomar para meulema.
ti. Nas parábolasdedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai quenunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada arecusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial:as da ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos(cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio dealegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e danossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence,enche o coração de amor e consola com o perdão.
Temos depois outraparábola da qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã.Interpelado pela pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessárioperdoar, Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezessete» (Mt 18, 22) e contou a parábola do «servo sem compaixão». Este, convidadopelo senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhorperdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele,que lhe devia poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade,mas aquele recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido dofacto, zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: «Não devias tambémter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?» (Mt 18, 33). E Jesusconcluiu: «Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós nãoperdoar ao seu irmão do íntimo do coração» (Mt 18, 35).
A parábola contém umensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia nãoé apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são osseus verdadeeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia,porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das ofensastorna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos,é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parecedifícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossasfrágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado oressentimento, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias parase viver feliz. Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: «Que o sol não seponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavrade Jesus que colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério decredibilidade para a nossa fé: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarãomisericórdia» (Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, comparticular empenho, neste Ano Santo.
Na SagradaEscritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir deDeus para connosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visívele palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por suaprópria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que severificam na actividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a suaresponsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso beme quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto,se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assimtambém amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamadostambém nós a ser misericordiosos, uns para com os outros.
10. A arquitrave quesuporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveriaestar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio etestemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. Acredibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo.A Igreja «vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia». Talvez,demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho damisericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fezesquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas aIgreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta esignificativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão nanossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própriapalavra parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenasuma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegoude novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É otempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dosnossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde acoragem para olhar o futuro com esperança.
11. Não podemosesquecer o grande ensinamento que ofereceu São João Paulo II com a sua segundaencíclica, a Dives in misericórdia, que então surgiu inesperada suscitando asurpresa de muitos pelo tema que era abordado. Desejo recordar especialmentedois trechos. No primeiro deles, o Santo Papa assinalava o esquecimento em quecaíra o tema da misericórdia na cultura dos nossos dias: «A mentalidade contemporânea,talvez mais que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdiae, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própriaideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causarmal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e datécnica nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, asubjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio sobre a terra, entendidopor vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para amisericórdia. Por esse motivo, na hodierna situação da Igreja e do mundo,muitos homens e muitos ambientes guiados por um vivo sentido de fé, voltam-sequase espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus».
Além disso, São JoãoPaulo II motivava assim a urgência de anunciar e testemunhar a misericórdia nomundo contemporâneo: «Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo oque é humano e que, segundo a intuição de grande parte dos contemporâneos, estáameaçado por um perigo imenso. O próprio mistério de Cristo (...) obriga-meigualmente a proclamar a misericórdia como amor misericordioso de Deus,revelada também no mistério de Cristo. Ele me impele ainda a apelar para estamisericórdia e a implorá-la nesta fase difícil e crítica da história da Igrejae do mundo». Tal ensinamento é hoje mais actual do que nunca e merece serretomado neste Ano Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: «A Igreja viveuma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirávelatributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes damisericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora».
12. A Igreja tem amissão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, quepor meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa deCristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todossem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na novaevangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmoe uma acção pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para acredibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia.A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas edesafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devemirradiar misericórdia.
A primeira verdadeeda Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom desi mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde aIgreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossasparóquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, ondehouver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis demisericórdia.
13. Queremos vivereste Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. Oevangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: «Sede misericordiosos, comoo vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativocomo rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem asua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemosprimeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valordo silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possívelcontemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.
14. A peregrinação éum sinal peculiar no Ano Santo, enquanto ícone do caminho que cada pessoarealiza na sua existência. A vida é uma peregrinação e o ser humano é viator,um peregrino que percorre uma estrada até à meta anelada. Também para chegar àPorta Santa, tanto em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoadeverá fazer, segundo as próprias forças, uma peregrinação. Esta será sinal deque a própria misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho esacrifício. Por isso, a peregrinação há-de servir de estímulo à conversão: aoatravessar a Porta Santa, deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus ecomprometer-nos-emos a ser misericordiosos com os outros como o Pai o éconnosco.
O Senhor Jesusindica as etapas da peregrinação através das quais é possível atingir estameta: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereiscondenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida,cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida queusardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 37-38). Ele começa por dizerpara não julgar nem condenar. Se uma pessoa não quer incorrer no juízo de Deus,não pode tornar-se juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-sea ler a superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem aspalavras, quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal doirmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a suareputação e deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem condenarsignifica, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e nãopermitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão desaber tudo. Mas isto ainda não é suficiente para se exprimir a misericórdia.Jesus pede também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porqueprimeiro o obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo quetambém Deus derrama a sua benevolência sobre nós com grande magnanimidade.
Misericordiosos comoo Pai é, pois, o «lema» do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de comoDeus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nadaem troca. Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que aoração diária da Igreja comece com estas palavras: «Deus, vinde em nossoauxílio! Senhor, socorrei-nos e salvai-nos» (Sal 70/69, 2). O auxílio queinvocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para connosco. Ele vempara nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Eleconsiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia, tocadospela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.
15. Neste Ano Santo,poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas maisvariadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo criade forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes nomundo actual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz,porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dospovos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidardestas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com amisericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nosdeixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia oespírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos osnossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos eprivados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito deajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para quesintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu gritose torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença quefrequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.
Não podemos escaparàs palavras do Senhor, com base nas quais seremos julgados: se demos de comer aquem tem fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimosquem está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt25, 31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida,que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes devencer a ignorância em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as criançasdesprovidas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemosjunto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende erejeitamos todas as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; setivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente connosco; enfim se, naoração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes «maispequeninos», está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novovisível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga... afim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Nãoesqueçamos as palavras de São João da Cruz: «Ao entardecer desta vida,examinar-nos-ão no amor».
16. No Evangelho deLucas, encontramos outro aspecto importante para viver, com fé, o Jubileu.Conta o evangelista que Jesus voltou a Nazaré e ao sábado, como era seucostume, entrou na sinagoga. Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la. Apassagem era aquela do profeta Isaías onde está escrito: «O espírito do SenhorDeus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-novaaos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aosexilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de misericórdiado Senhor» (61,1-2). «Um ano de misericórdia»: isto é o que o Senhor anuncia eque nós desejamos viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza da missão deJesus que ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um gesto deconsolação aos pobres, anunciar a libertação a quantos são prisioneiros dasnovas escravidões da sociedade contemporânea, devolver a vista a quem já nãoconsegue ver porque vive curvado sobre si mesmo, e restituir dignidade àquelesque dela se viram privados. A pregação de Jesus torna-se novamente visível nasrespostas de fé que o testemunho dos cristãos é chamado a dar. Acompanhem-nosas palavras do Apóstolo: «Quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria» (Rm12, 8).
17. A Quaresma desteAno Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar eexperimentar a misericórdia de Deus. Quantas páginas da Sagrada Escritura sepodem meditar, nas semanas da Quaresma, para redescobrir o rosto misericordiosodo Pai! Com as palavras do profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós,Senhor, sois um Deus que tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não Seobstina na ira mas Se compraz em usar de misericórdia. Vós, Senhor, voltareispara nós e tereis compaixão do vosso povo. Apagareis as nossas iniquidades elançareis ao fundo do mar todos os nossos pecados (cf. 7, 18-19).
As páginas doprofeta Isaías poderão ser meditadas, de forma mais concreta, neste tempo deoração, jejum e caridadee. «O jejum que me agrada é este: libertar os que forampresos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade osoprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com osesfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e nãodesprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuasferidas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e aglória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá,pedirás auxílio e te dirá: “Aqui estou!” Se retirares da tua vida toda aopressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com ofaminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuastrevas tornar-se-ão como o meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciaráa tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardimbem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis» (58, 6-11).
A iniciativa «24horas para o Senhor», que será celebrada na sexta-feira e no sábado anterioresao IV Domingo da Quaresma, deve ser incrementada nas dioceses. Há muitaspessoas – e, em grande número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramentoda Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram o caminhopara voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração e redescobrir osentido da sua vida. Com convicção, ponhamos novamente no centro o sacramentoda Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza damisericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeeira paz interior.
Não me cansareijamais de insistir com os confessores para que sejam um verdadeeiro sinal damisericórdia do Pai. Ser confessor não se improvisa. Tornamo-nos tal quandocomeçamos, nós mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nuncaesqueçamos que ser confessor significa participar da mesma missão de Jesus eser sinal concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Cadaum de nós recebeu o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados; distosomos responsáveis. Nenhum de nós é senhor do sacramento, mas apenas servo fieldo perdão de Deus. Cada confessor deverá acolher os fiéis como o pai naparábola do filho pródigo: um pai que corre ao encontro do filho, apesar de lheter dissipado os bens. Os confessores são chamados a estreitar a si aquelefilho arrependido que volta a casa e a exprimir a alegria por o terreencontrado. Não nos cansemos de ir também ao encontro do outro filho, queficou fora incapaz de se alegrar, para lhe explicar que o seu juízo severo éinjusto e sem sentido diante da misericórdia do Pai que não tem limites. Não hão-defazer perguntas impertinentes, mas como o pai da parábola interromperão odiscurso preparado pelo filho pródigo, porque saberão individuar, no coração decada penitente, a invocação de ajuda e o pedido de perdão. Em suma, osconfessores são chamados a ser sempre e por todo o lado, em cada situação eapesar de tudo, o sinal do primado da misericórdia.
18. Na Quaresmadeste Ano Santo, é minha intenção enviar os Missionários da Misericórdia. Serãoum sinal da solicitude materna da Igreja pelo povo de Deus, para que entre emprofundidade na riqueza deste mistério tão fundamental para a fé. Serãosacerdotes a quem darei autoridade de perdoar mesmo os pecados reservados à SéApostólica, para que se torne evidente a amplitude do seu mandato. Serãosobretudo sinal vivo de como o Pai acolhe a todos aqueles que andam à procurado seu perdão. Serão missionários da misericórdia, porque se farão, junto detodos, artífices dum encontro cheio de humanidade, fonte de libertação, rico deresponsabilidade para superar os obstáculos e retomar a vida nova do Baptismo.Na sua missão, deixar-se-ão guiar pelas palavras do Apóstolo: «Deus encerrou atodos na desobediência, para com todos usar de misericórdia» (Rm 11, 32). Na verdadeetodos, sem excluir ninguém, estão chamados a acolher o apelo à misericórdia. Osmissionários vivam esta chamada, sabendo que podem fixar o olhar em Jesus, «SumoSacerdote misericordioso e fiel» (Hb 2, 17).
Peço aos irmãosbispos que convidem e acolham estes Missionários, para que sejam, antes de tudo,pregadores convincentes da misericórdia. Organizem-se, nas dioceses, «missõespopulares», de modo que estes Missionários sejam anunciadores da alegria doperdão. Seja-lhes pedido que celebrem o sacramento da Reconciliação para opovo, para que o tempo de graça, concedido neste Ano Jubilar, permita a tantosfilhos afastados encontrar de novo o caminho para a casa paterna. Os pastores,especialmente durante o tempo forte da Quaresma, sejam solícitos em convidar osfiéis a aproximar-se «do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia eencontrar graça» (Hb 4, 16).
1ti. Que a palavrado perdão possa chegar a todos e a chamada para experimentar a misericórdia nãodeixe ninguém indiferente. O meu convite à conversão dirige-se, com insistênciaainda maior, àquelas pessoas que estão longe da graça de Deus pela sua condutade vida. Penso de modo particular nos homens e mulheres que pertencem a umgrupo criminoso, seja ele qual for. Para vosso bem, peço-vos que mudeis devida. Peço-vo-lo em nome do Filho de Deus que, embora combatendo o pecado,nunca rejeitou qualquer pecador. Não caiais na terrível cilada de pensar que avida depende do dinheiro e que, à vista dele, tudo o mais se torna desprovidode valor e dignidade. Não passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro connoscopara o além. O dinheiro não nos dá a verdadeeira felicidade. A violência usadapara acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos nemimortais. Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de Deus, do qualninguém pode escapar.
O mesmo convitechegue também às pessoas fautoras ou cúmplices de corrupção. Esta pragaputrefacta da sociedade é um pecado grave que brada aos céus, porque mina aspróprias bases da vida pessoal e social. A corrupção impede de olhar para ofuturo com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói osprojectos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nosgestos diários para se estender depois aos escândalos públicos. A corrupção éuma contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do dinheirocomo forma de poder. É uma obra das trevas, alimentada pela suspeita e aintriga. Corruptio optimi pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno,querendo indicar que ninguém pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicarda vida pessoal e social são necessárias: prudência, vigilância, lealdade,transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se não se combateabertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida.
Este é o momentofavorável para mudar de vida! Este é o tempo de se deixar tocar o coração.Diante do mal cometido, mesmo crimes graves, é o momento de ouvir o pranto daspessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade, dos afectos, da própriavida. Permanecer no caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A verdadeeiravida é outra coisa. Deus não se cansa de estender a mão. Está sempre disposto aouvir, e eu também estou, tal como os meus irmãos bispos e sacerdotes. Bastaacolher o convite à conversão e submeter-se à justiça, enquanto a Igrejaoferece a misericórdia.
20. Neste contexto,não será inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não são doisaspectos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única realidadee que sedesenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor. Ajustiça é um conceito fundamental para a sociedade civil, normalmente quando sefaz referimento a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei. Porjustiça entende-se também que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. NaBíblia, alude-se muitas vezes à justiça divina, e a Deus como juiz.Habitualmente é entendida como a observância integral da Lei e o comportamentode todo o bom judeu conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta visão, porém,levou não poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o sentido original eobscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para superar a perspectivalegalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada Escritura, a justiça éconcebida essencialmente como um abandonar-se confiante à vontade de Deus.
Por sua vez, Jesusfala mais vezes da importância da fé que da observância da lei. É neste sentidoque devemos compreender as suas palavras, quando, encontrando-Se à mesa comMateus e outros publicanos e pecadores, disse aos fariseus que O acusavam porisso mesmo: «Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia aosacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mt 9, 13).Diante da visão duma justiça como mera observância da lei, que julga dividindoas pessoas em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom damisericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação.Compreende-se que Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte derenovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes,para ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das pessoas,anulando porém a misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não podeobstaculizar a atenção às necessidades que afectam a dignidade das pessoas.
A propósito, é muitosignificativo o apelo que Jesus faz ao texto do profeta Oseias: «Eu quero a misericórdiae não os sacrifícios» (6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra devida dos seus discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia,como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os pecadores. Amisericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão fundamental da missão deJesus. É um verdadeeiro desafio posto aos seus interlocutores, que secontentavam com o respeito formal da lei. Jesus, pelo contrário, vai além dalei, a sua partilha da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permitecompreender até onde chega a sua misericórdia.
Também o apóstoloPaulo fez um percurso semelhante. Antes de encontrar Cristo no caminho deDamasco, a sua vida era dedicada a servir de maneira irrepreensível a justiçada lei (cf. Fl 3, 6). A conversão a Cristo levou-o a inverter a sua visão, aponto de afirmar na Carta aos Gálatas: «Também nós acreditámos em Cristo Jesus,para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei» (2, 16). Asua compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo agora põe no primeiro lugara fé, e já não a lei. Não é a observância da lei que salva, mas a fé em JesusCristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdiaque justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estãooprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas consequências. A justiça deDeus é o seu perdão (cf. Sl 51/50, 11-16).
21. A misericórdianão é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com opecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter eacreditar. A experiência do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superaçãoda justiça na linha da misericórdia. A época em que viveu este profeta conta-seentre as mais dramáticas da história do povo judeu. O Reino está próximo dadestruição; o povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de Deus e perdeu afé dos pais. Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar opovo infiel: não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece adevida pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: «Nãovoltará para o Egipto, mas a Assíria será o seu rei, porque recusaramconverter-se» (Os 11, 5). E todavia, depois desta reacção que faz apelo àjustiça, o profeta muda radicalmente a sua linguagem e revela o verdadeeirorosto de Deus: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhasentranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruirEfraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não medeixo levar pela ira» (11, 8-9). Santo Agostinho, de certo modo comentando aspalavras do profeta, diz: «É mais fácil que Deus contenha a ira do que amisericórdia». É mesmo assim! A ira de Deus dura um instante, ao passo que asua misericórdia é eterna.
Se Deus Se detivessena justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelorespeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostraque, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por issoDeus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significadesvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra,deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão,porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Eleengloba-a e supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que estána base duma verdadeeira justiça. Devemos prestar muita atenção àquilo queescreve Paulo, para não cair no mesmo erro que o apóstolo censurava nos judeus,seus contemporâneos: «Por não terem reconhecido a justiça que vem de Deus eterem procurado estabelecer a sua própria justiça, não se submeteram à justiçade Deus. É que o fim da Lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça sejaconcedida a todo o que tem fé» (Rm 10, 3-4). Esta justiça de Deus é amisericórdia concedida a todos como graça, em virtude da morte e ressurreiçãode Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre todos nós esobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da vida nova.
22. O Jubileu incluitambém o referimento à indulgência. Esta, no Ano Santo da Misericórdia, adquireuma relevância particular. O perdão de Deus para os nossos pecados não conhecelimites. Na morte e ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seuamor que chega ao ponto de destruir o pecado dos homens. É possível deixar-sereconciliar com Deus através do mistério pascal e da mediação da Igreja. Porisso, Deus está sempre disponível para o perdão, não Se cansando de o oferecerde maneira sempre nova e inesperada. No entanto todos nós fazemos experiênciado pecado. Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5, 48), mas sentimosfortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça quenos transforma, experimentamos também a força do pecado que nos condiciona.Apesar do perdão, carregamos na nossa vida as contradições que são consequênciados nossos pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, quesão verdadeeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nosnossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, émais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através daEsposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduodas consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridadee, a crescer noamor em vez de recair no pecado.
A Igreja vive acomunhão dos Santos. Na Eucaristia, esta comunhão, que é dom de Deus,realiza-se como união espiritual que nos une, a nós crentes, com os Santos e Beatoscujo número é incalculável (Ap 7, 4). A sua Santidade vem em ajuda da nossafragilidade, e assim a Mãe-Igreja, com a sua oração e a sua vida, é capaz deacudir à fraqueza de uns com a Santidade de outros. Portanto viver aindulgência no Ano Santo significa aproximar-se da misericórdia do Pai, com acerteza de que o seu perdão cobre toda a vida do crente. A indulgência éexperimentar a Santidade da Igreja que participa em todos os benefícios daredenção de Cristo, para que o perdão se estenda até às últimas consequênciasaonde chega o amor de Deus. Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai operdão dos pecados e a indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.
23. A misericórdiapossui uma valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja. Ela relaciona-noscom o judaísmo e o islamismo, que a consideram um dos atributos mais marcantesde Deus. Israel foi o primeiro que recebeu esta revelação, permanecendo esta nahistória como o início duma riqueza incomensurável para oferecer à humanidadeinteira. Como vimos, as páginas do Antigo Testamento estão permeadas demisericórdia, porque narram as obras que o Senhor realizou em favor do seupovo, nos momentos mais difíceis da sua história. O islamismo, por sua vez,coloca entre os nomes dados ao Criador o de Misericordioso e Clemente. Estainvocação aparece com frequência nos lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentemacompanhados e sustentados pela misericórdia na sua fraqueza diária. Tambémeles acreditam que ninguém pode pôr limites à misericórdia divina, porque assuas portas estão sempre abertas.
Possa este AnoJubilar, vivido na misericórdia, favorecer o encontro com estas religiões e comas outras nobres tradições religiosas; que ele nos torne mais abertos aodiálogo, para melhor nos conhecermos e compreendermos; elimine todas as formasde fechamento e desprezo e expulse todas as formas de violência ediscriminação.
24. O pensamentovolta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanheneste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura deDeus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feitohomem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feitacarne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdiadivina, porque participou intimamente no mistério do seu amor.
Escolhida para ser aMãe do Filho de Deus, Maria foi preparada desde sempre, pelo amor do Pai, paraser Arca da Aliança entre Deus e os homens. Guardou, no seu coração, amisericórdia divina em perfeita sintonia com o seu Filho Jesus. O seu cânticode louvor, no limiar da casa de Isabel, foi dedicado à misericórdia que seestende «de geração em geração» (Lc 1, 50). Também nós estávamos presentesnaquelas palavras proféticas da Virgem Maria. Isto servir-nos-á de conforto eapoio no momento de atravessarmos a Porta Santa para experimentar os frutos damisericórdia divina.
Ao pé da cruz,Maria, juntamente com João, o discípulo do amor, é testemunha das palavras deperdão que saem dos lábios de Jesus. O perdão supremo oferecido a quem Ocrucificou, mostra-nos até onde pode chegar a misericórdia de Deus. Mariaatesta que a misericórdia do Filho de Deus não conhece limites e alcança atodos, sem excluir ninguém. Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, daSalve Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver para nós os seus olhosmisericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seuFilho Jesus.
E a nossa oraçãoestenda-se também a tantos Santos e Beatos que fizeram da misericórdia a suamissão vital. Em particular, o pensamento volta-se para a grande apóstola daMisericórdia, Santa Faustina Kowalska. Ela, que foi chamada a entrar nasprofundezas da misericórdia divina, interceda por nós e nos obtenha a graça deviver e caminhar sempre no perdão de Deus e na confiança inabalável do seuamor.
25. Será, portanto,um Ano Santo extraordinário para viver, na existência de cada dia, amisericórdia que o Pai, desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu,deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta doseu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida. AIgreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A suavida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio.Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia degrandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grandemistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja échamada, em primeiro lugar, a ser verdadeeira testemunha da misericórdia,professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. Docoração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e fluiincessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderáesgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempreque alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deusnão tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tantoé inesgotável a riqueza que dela provém.
Neste Ano Jubilar,que a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente,como uma palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca secanse de oferecer misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar.Que a Igreja se faça voz de cada homem e mulher e repita com confiança e semcessar: «Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois elesexistem desde sempre» (Sl 25/24, 6).
Dado em Roma, juntode São Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou da DivinaMisericórdia – do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de pontificado.
Francisco